• Bianca Martins

    É psicóloga, psicanalista, entusiasta da maternidade, paternidade e mestre em Saúde Coletiva. Escreve sobre os bebês, as emoções, os comportamentos, os conflitos e dilemas contemporâneos do tornar-se família

Uma nota sobre o aborto e as violências contra as mulheres

Publicado em 04/07/2022 às 02h00
Dois dias após a descoberta da gravidez, a menina foi levada ao hospital pela mãe para realizar aborto legal

Abortar não é fácil. Por diversos motivos. Cada mulher tem o seu próprio. Crédito: Shutterstock

Eu não conheço qualquer pessoa no mundo que não se sensibilize diante da questão do aborto. Uma mulher que considera não levar uma gestação ao seu curso final, ao contrário do que pensam os moralistas, não é uma desnaturada ou um ser humano vil. Mas, sim, um sujeito que analisou todas as suas possibilidades e que, diante do abandono, que pode ser ou conjugal, em primeira instância, ou social, ou econômico e psíquico, encontra-se diante da escolha mais difícil de se fazer enquanto portadora de seu gênero.

Abortar não é fácil. Por diversos motivos. Cada mulher tem o seu próprio.

Há aproximadamente 20 anos diariamente escuto as mulheres no exercício do meu ofício. Elas se encontram, aliás, nas mais variadas e embaraçosas situações, assim como também os homens, mas posso afirmar que o aborto é um drama muito particular. Homem nenhum, mesmo o mais empático, jamais entenderá o tipo de mobilização emocional que articula essa questão.

Uma jovem de 13 anos, violentada pelo tio desde os sete anos, foi expulsa de casa e da igreja ao terem percebido a gravidez. Aqui temos o abandono familiar e religioso. Graças à professora na escola do bairro, foi acolhida pelo Conselho Tutelar e encaminhada para a interrupção da gravidez. A educação sexual nas escolas serve para orientar, quando uma família incestuosa não protege suas meninas.

Aos 17 anos, outra jovem violentada por um taxista ficou em choque traumático por meses, até a mãe perceber a ausência de sua menstruação. Divididas entre a moral e o futuro, foi acolhida em um serviço de assistência às mulheres violentadas em uma grande cidade e todas as possibilidades, desde a interrupção voluntária à adoção, foram apresentadas. Escolheu pela interrupção. Escolher é um verbo muito pouco estimulado e considerado quando se é mulher, neste país.

Outra mulher de 35 anos, mãe de duas crianças, foi mantida em cárcere privado por dois criminosos por dois dias sendo, repetidamente violentada. Escapou devido a um descuido dos bandidos. Demorou semanas para processar o que tinha acontecido. O estupro é uma experiência mortífera. Sobreviver às violências não é fácil. Se viu grávida nessas condições.

Apoiada pelo marido, buscou ajuda em serviço de abortamento legal. Não fez boletim de ocorrência, pois ouve aos quatro ventos como são tratadas as mulheres que buscam esse aparelho do estado. Relatar a violência sofrida é revivê-la.

Após a interrupção da gravidez, passou anos sem reconhecer a si mesma. Anos que impactaram na vida de sua família, na vida de suas filhas. Tempo de vida que nada restitui.

Durante os anos de trabalho no hospital público, pude acompanhar os procedimentos de interrupção voluntária de gestações. Trata-se de um procedimento relativamente simples, pouco invasivo e rápido. Mas são os modos de manejos inadequados da equipe de saúde que deixam as marcas mais traumáticas. Esses, sim, devem ser evitados. O despreparo da equipe deve ser condenado e abolido.

Há poucos meses uma paciente que atendi há mais de 12 anos me procurou. Na época ela tinha 15 anos quando foi violentada por um desconhecido na volta da escola. Essa moça de classe média alta permaneceu em análise até os 20 anos. Não confiava em ninguém, não saía de casa. Manteve sua juventude isolada, com medo do que pensariam dela se soubessem do estupro. Não teria amigas, ninguém confiaria nela. Agora, aos 27 anos, encontra-se grávida do companheiro. Fruto de um relacionamento consensual e amoroso, mas ao saber que o bebê que carregava no ventre era uma menina teve desencadeada uma crise de ansiedade. “O que será da minha filha? E se acontecer com ela o que aconteceu comigo?”

Escuto essa frase com frequência. E me pergunto ao ouvi-la: seríamos todas nós, mulheres, sobrevivente dos atos de violência contra nosso sexo? Atos que muitas vezes impõem a algumas a experiência da maternidade compulsória?

Enquanto mulher, nunca fui violada. De nenhum tipo. Sendo exceção à regra, não estou ilesa. A cada narrativa, a cada relato, a cada notícia de violação, algo em meu gênero também é violado. Nas mais variadas experiências relatadas a mim, no atendimento privado, ora do consultório, ora do serviço público, também me torno vítima. Toda mulher se torna.

Este vídeo pode te interessar

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de HZ.

A Gazeta integra o

Saiba mais
mulher Saúde
Viu algum erro?

Se você notou alguma informação incorreta em nosso conteúdo, clique no botão e nos avise, para que possamos corrigi-la o mais rápido o possível