• Maria Sanz

    É artista e escritora, e como observadora do cotidiano, usa toda sua essência criativa na busca de entender a si mesma e o outro. É usuária das medicinas da palavra, da música, das cores e da dança

Quadrada numa passagem pela Bahia

Publicado em 08/10/2023 às 05h00
Quadrado em Trancoso

Quadrado em Trancoso. Crédito: Shutterstock

Trancoso, Bahia.

Gosto eu tenho mesmo é por fazer uso da ignorância. De saber um pouco de tudo sobre nada. Atrelada que sou à desimportância das coisas, quero não saber aonde ei de chegar – coisa mais sem razão! Preciso chegar de surpresa para ter certeza cabal da invenção do caminho. Sinto apego por todo arrepio possível. E inventei sozinha de ser a menina que faz não questão de aprovação. Viajo, nem sempre de avião.

Outro dia visitei sem querer o encontro do rio com o mar e experimentei por anseio a força do verbo desembocar, atravessando meu corpo sem jeito. Impressionável a estreiteza do rio pequenino vazando com decisão de gigante pra dentro do mar, que justo no ponto de encontro ficava manso, que é modo seu de respeitar a natureza, mãe que faz tudo que é dela mesma se encontrar. E isso é verdade... O que nos une ainda mais são nossos banhos de mar.

Pássaros à toa, na farra de mergulhar por dentro da onda brava de espuma branca, depois vir à tona ofegantes, se abraçar por entre risos salgados. (E toda galáxia se resume no olhar). Tem hora que a vida escancara!

Naquela outra manhã, o silêncio da chuva se fazia grosso. Dobrados por entre puídos lençóis de pousada, dormíamos com nobreza de galho. Choveu no meu pé. Cheguei para o lado. (Que chova!) Voltei a sonhar com areais dourados. Choveu na minha cabeça. Acordei pra porta de entrada que já bufava em marolas de tão lotada. A água caía fazendo bolhas nas poças, sapos e rãs passeavam de canoa, um pé de havaiana rosa passou boiando, foi embora... No céu um buraco azulzinho semeava esperança em raios. (Ó, parou!) “Sabia, te disse”.

E eu que não queria saber de nada... A tarde comprida de espreguiçava toda amostrada. A praça cheia de poças e moças num indo e vindo que nunca se viu, pisando com cuidado pé ante pé pra não molhar a saia. Era dia de festa e a hora era quase.

De repente, a tarde começou a correr atrás de mim como o cachorro faz com gato. É que tenho pincéis mágicos para pintar cara de festa – em razão dessa, a cunhada e a comadre chegaram na minha janela – bem pintei a cara delas. Depois fiquei encurralada ouvindo o latido do atraso. Perdi a visão da moça bonita que se casava. Fiquei sem retrato.

Quando foi minha vez de chegar na praça, arregalei os olhos e a alma – mais parecia uma caravana de artistas toda aquela gente enfeitada – trapezistas, bailarinos e mágicos, era tanta boniteza vindo junto do fundo da praça (salpicada de poças d’água) que me lembrei do rio vazando pra a grande festa.

Assim, de mãos dadas, apertamos o passo e nos misturamos à massa.

Descaminho alcandorado... Festança de ama em asas de borboletas ciganas – engenharia da alegria. Me perdi à beça, dancei na areia, livre das horas, em plena comunhão com a madrugada e suas graças, iluminada pelo escuro que suas estrelas bem amostrava.

Sim, eu estive na Bahia de surpresa. Invenção toda minha cravejada de arrepios concedidos pela natureza. Trouxe de lá um axé, deixei um viva e desaprendi ainda mais coisas que jamais saber eu quis.

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Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de HZ.

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