• Bianca Martins

    É psicóloga, psicanalista, entusiasta da maternidade, paternidade e mestre em Saúde Coletiva. Escreve sobre os bebês, as emoções, os comportamentos, os conflitos e dilemas contemporâneos do tornar-se família

A culpa não é da mãe!

Publicado em 11/07/2022 às 02h00
Mulher

A responsabilidade sobre uma criança é de todos nós. Crédito: Freepik

É muito difícil ser mãe. Principalmente no Brasil. E também é muito difícil não o ser. O que quero dizer é que as mulheres no nosso país são o principal alvo do controle dos corpos, principalmente do controle violento, quer nas relações privadas, nos casamentos, na família nuclear, quer nas arbitrariedades cometidas pelo estado em nome da moral e não da lei.

A nossa cultura ainda endereça às mulheres, principalmente àquelas portadoras de útero e ovário, a responsabilidade indelével de cuidar de uma criança, e sozinha. Mesmo que tenha um companheiro, a responsabilidade é majoritariamente dela.

O ditado popular “quem pariu Mateus que o embale”, onera somente quem pariu. Não me canso de repetir os números, e eles se fazem persecutórios à minha escrita. No ano de 2021, 100 mil crianças não receberam o nome de seu progenitor nas certidões de nascimento o maior número desde 2018. Isso sem contar àqueles “pais” que registram mas que jamais se ocupam das necessidades mais básicas da criança. Já as mães, essas não tem escapatória. Tive a curiosidade de pesquisar no Google para saber quantas crianças no ano de 2021 não tiveram o nome da mãe registrados em suas certidões de nascimento. Eu tenho certeza que você sabe muito bem a resposta. Não há dados para essa informação. A origem de uma criança sempre necessitará do registro do corpo de uma mulher, onde nele fez morada por 9 meses.

Nos últimos dias temos assistido em todos os canais possíveis de informações, de notícias, e de fofocas, a uma verdadeira caça às bruxas. Na antiguidade, as mulheres eram queimadas em praça pública por seus supostos pactos com o diabo. Mas quem era o diabo na antiguidade? Quem é o diabo hoje? Sugiro que assistam ao desconfortável filme espanhol cujo nome é “Silenciadas” (2020), título muito oportuno pois é o que se faz até hoje com as demandas das mulheres, as mantêm em silêncio. Hoje, o diabo tem outras faces, e a mais perversa dela diz respeito ao materno. Se uma mulher não deseja, ou não quer, ou não pode ser mãe, então que seja queimada na fogueira da exposição pública. As escolhas de ordem privada são publicizadas em cliques que devassam e destroem as vidas em momentos de maior vulnerabilidade. Quer sejam as vida de anônimas, quer sejam as vida de pessoas públicas. Independentemente da idade, cor, classe, o alvo é o mesmo, o corpo das mulheres e a função materna.

Em nome da confortável fantasia da manutenção do amor materno, queimam-se as mães, para salvar o delírio coletivo e deixam-se os filhos órfãos. 

Mas não é assim em todo o mundo. Nos países onde homens e mulheres desfrutam de mais equidade, a história é bem outra. Os índices de violência são infinitamente menores, todas elas, da doméstica à institucional. Os corpos não sofrem o controle maquineísta que sofrem as mulheres principalmente “nas Américas”. Há respeito às individualidades. Os direitos conquistados são legitimados por todos.

E no que a vida das mulheres impacta no cuidado com a criança, já que a culpa não é só da mãe? Eis o descortinamento que quero trazer à nossa análise. Endereçar a responsabilidade das crianças às mulheres, num imperativo da maternidade compulsória, é desresponsabilizar os demais atores da vida da criança. Se não há um pai, como no caso das 100 mil crianças não registradas, é necessário haver avôs e avós. Se eles estão ocupados em outras funções, então que tenhamos tios e tias. Esses também não estão disponíveis, então os aparelhos do estado, como as escolas, as praças, os parques, os hospitais, e os incentivos financeiros sejam de alcance daqueles que mais precisam. Mas esses também andam brutalmente falhando, mas só a mãe, só as mulheres são responsabilizadas com fogo e brasa por suas supostas falhas. Sim, nesse contexto solitário do cuidado o que mais se pode fazer é falhar. Pois o trabalho não compartilhado de cuidar de uma criança é hercúleo e as mulheres, embora enaltecidas na função de mães são os seres menos respeitados e valorizados na nossa sociedade.

Notem, a culpa não é só da mãe. A responsabilidade sobre uma criança é de todos nós. Se você não sente seu estômago revirar ao parar em um semáforo, ou, ao andar pelo seu bairro e ver crianças maltrapilhas vendendo balas, sozinhas, tarde da noite na rua, então como sociedade, só por essa questão, falhamos miseravelmente. Se você não se sente mal ao saber que há tantas mulheres cuidando de seus filhos sozinha, sem apoio da família e nem do estado, estamos legitimando ainda mais a violência instituída à essas mulheres. Se não se abala pelos números gigantes de crianças em situação de risco social, abandonadas, ou violentadas, então é preciso repensar a sua humanidade. Pois a culpa de tudo isso, não é só da mãe.

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Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de HZ.

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