• Rachel Martins

    Uma jornalista que ama os animais, assim é Rachel Martins. Não é a toa que ela adotou duas gatinhas, a Frida e a Chloé, que são as verdadeiras donas da casa. Escreve semanalmente sobre os benefícios que uma relação como essa é capaz de proporcionar

Caso Agenor Tupinambá: saiba os riscos de domesticar capivaras

Publicado em 09/05/2023 às 08h01
O Ibama Espírito Santo ressalta que filhotes tidos como abandonados podem apenas estar aguardando o retorno da mãe de uma busca por comida, por exemplo

O Ibama Espírito Santo ressalta que filhotes tidos como abandonados podem apenas estar aguardando o retorno da mãe de uma busca por comida, por exemplo. Crédito: Pexels

Nos últimos dias, o produtor rural Agenor Tupinambá que vive em sua fazenda, em Autazes, no interior do Amazonas, foi alvo de uma grande polêmica envolvendo a capivara Filó. Ele já era conhecido em suas redes sociais, com 34 milhões de seguidores, onde costumava mostrar sua rotina ao lado do animal silvestre que vive em sua companhia.

A questão tomou uma proporção maior quando o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos (Ibama), cumprindo a Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/1998) e o Decreto de Infrações Ambientais (Decreto nº 6.514/2008), notificou Agenor, aplicou uma multa de R$ 17 mil, exigiu o arquivamento das fotos e vídeos da capivara (e outros animais silvestres que estavam ilegalmente em sua guarda) nas suas redes sociais, e determinou a entrega de Filó ao Centro de Triagem de Animais Silvestres (Cetas) do Amazonas.

o produtor rural Agenor Tupinambá que vive em sua fazenda, em Autazes, no interior do Amazonas, foi alvo de uma grande polêmica envolvendo a capivara Filó

O produtor rural Agenor Tupinambá foi alvo de uma grande polêmica envolvendo a capivara Filó. Crédito: Reprodução @agenor.tupinambá

A partir daí, o assunto viralizou e o Brasil começou a se manifestar dando sua opinião em relação à questão. Entraram com uma ação na justiça e uma liminar concedeu a guarda provisória da capivara para Agenor até o final do processo. Diante da polêmica, a coluna É o bicho resolveu entrar mais a fundo na questão, entrevistou o médico-veterinário do Hospital Silvestres de Criadouros Comerciais e Mantenedores e responsável técnico do Bio Parques das Aves, Eduardo Lázaro de Faria da Silva, a advogada, membro da Comissão Especial de Proteção aos Animais, da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Amazonas (OAB-AM), Ana Cristina Serique dos Santos, e o Ibama.

Animais silvestres de vida livre

Para o médico-veterinário Eduardo da Silva, não é possível garantir se a capivara estava sofrendo maus-tratos ou em bem-estar. “Essa é uma questão bastante delicada, a gente só tem fotos, vídeos, entre outros conteúdos, provenientes das redes sociais de Agenor para compreender todo o processo de vida de Filó”, alerta.

Mas na sua opinião, no caso de animais silvestres, que não possuem documentação legal, mas estão por algum motivo sob a guarda de alguém, mesmo que teoricamente estejam sendo bem tratados, existe uma lei que precisa ser cumprida. "Acredito que até pelo fato da exposição de Filó nas redes sociais, a situação tenha vindo à tona, e segundo o Ibama o ‘influenciador digital’ tinha outros animais silvestres sem autorização dos órgãos competentes, e isso, acredito, pode ter levantado mais suspeitas. Mas tudo precisa ser averiguado com toda cautela, antes de qualquer julgamento", diz Eduardo da Silva.

Eduardo Silva salienta que os animais de vida livre, que nasceram com pai e mãe no local (não em cativeiro), não são possíveis de domesticar. “Nesses casos, na verdade, eles acabam se humanizando, o que é diferente de domesticação. O ser humano está ensinando a eles coisas de humanos, não o que o pai e a mãe da espécie ensinariam estando juntos em meio à natureza”.

Ele ressalta, ainda, que no caso de animais silvestres de cativeiro, no qual se tem a reprodução, e podem ser comercializados legalmente, aí sim é possível a domesticação, porque são gerações criadas para esse propósito, são animais dóceis.

“Animais de vida livre que você recolhe na natureza não podem ser domesticados, e nem é aconselhável, até por conta das zoonoses, doenças que passam do homem para o animal e vice-versa. Por isso, a recomendação é que se a pessoa encontrar um animal de vida livre, mesmo que nas melhores das intenções queira ficar com ele, não deve jamais fazê-lo.”.

"O correto é entregar aos órgãos competentes, solicitando o seu recolhimento o mais rápido possível. Ficar com um animal de vida livre pode ser muito pesado psicologicamente para ele, principalmente porque será colocado, de alguma maneira ou outra, em um cativeiro. Por isso, existem no mercado animais silvestres legalizados para serem cuidados por pessoas dispostas a adotá-los"

"O correto é entregar aos órgãos competentes, solicitando o seu recolhimento o mais rápido possível. Ficar com um animal de vida livre pode ser muito pesado psicologicamente para ele, principalmente porque será colocado, de alguma maneira ou outra, em um cativeiro. Por isso, existem no mercado animais silvestres legalizados para serem cuidados por pessoas dispostas a adotá-los"

Eduardo Silva

Especializado em animais silvestres, o médico-veterinário explica o quanto é difícil manter em cativeiro 100% o bem-estar de uma capivara. “São animais extremamente aquáticos, então sua fisiologia recomenda 80% dentro da água”, garante.

Segundo ele, já as capivaras domesticadas, portanto já legalizadas, até é possível transpor para o cativeiro a sua alimentação. “Digamos, criar um ambiente o mais próximo do seu, em um local que de certa forma já fornece boa parte do que ela necessita para seu bem-estar. “Além disso, precisa ficar atento à sua saúde anual, às vezes também será necessário suprir algumas deficiências com vitaminas ou formulações alimentares mais específicas, por que cada indivíduo responde de uma forma, por isso o acompanhamento médico-veterinário especializado é extremamente importante”.

Eduardo Silva afirma que também não dá para saber se foi melhor para Filó não deixá-la na natureza. “Quem garante que ela era uma filhote abandonada? De repente, a mãe estava com medo do ser humano, e naquele momento, até para se preservar, deixou o filhote naquele local, mas com certeza ela estava de longe olhando, esperando a hora certa de voltar e resgatá-la. E isso acontece muito, principalmente com felinos, e capivaras também, porque são animais arredios”, informa.

Eduardo Silva ressalta, ainda, que como Agenor resgatou a capivara, cuidou dela, embora de forma não legalizada, ele tem o direito de ir à justiça para recuperá-la e deixá-la lá onde está, mas por outro lado, o Ibama tem o dever de cumprir a lei. “Nos dois casos certamente o objetivo é o bem-estar de Filó, mas o processo é longo”.

O médico-veterinário explica, também, que as capivaras são roedoras e, portanto, têm o metabolismo muito acelerado, assim como o seu sistema reprodutivo, por isso sua proliferação é muito acentuada. “E acaba que com isso, elas têm invadindo as áreas urbanas, causando conflitos com os moradores locais. “Isso é proveniente da falta de planejamento em relação ao crescimento urbano e ao desmatamento da natureza. E sem o seu habitat natural, elas saem em busca de alimento nas cidades. E isso acaba se transformando em um problema de saúde pública por conta das zoonoses”, alerta.

Questão cultural

A advogada, membro da Comissão Especial de Proteção aos Animais da OAB-AM, Ana Cristina Serique dos Santos, corrobora com o Ibama no cumprimento da lei, que sempre deve ser cumprida. “Mas na nossa opinião deve-se, também, avaliar caso a caso, conforme suas peculiaridades. Na região amazônica tem-se o costume de se ter animais silvestres, como se fossem domésticos. É uma questão cultural que precisa ser levada em conta. Tudo precisa ser observado prezando sempre pelo bem-estar do animal. Mas estamos falando de uma pessoa com entendimento e cursando ensino superior em Agronomia. O mais indicado, sempre, é que um animal silvestre não só esteja na natureza, mas que também possa exercer a sua liberdade na companhia de outros da própria espécie”, alerta.

Ela explica que a Instrução Normativa 5, de 13 de maio de 2021, indica que após a apreensão, em caso de ilegalidade quanto à guarda de animais silvestres, há um procedimento a ser realizado.

“Os animais silvestres são atendidos, passam por um criterioso processo de avaliação, e são encaminhados de acordo com suas condições e espécie. A maioria, entretanto, é solta na área de sua procedência ou ocorrência. Para isso, eles necessitam passar por um processo de mudanças de hábitos alimentares e formação de grupos no caso de espécies gregárias. Quando apresentam uma grande dificuldade de adaptação à vida livre, às vezes impossibilitando a sua soltura, acabam sendo direcionados para mantenedores, zoológicos ou criadores científicos. Infelizmente, vimos alguns vídeos publicados nas redes sociais mostrando que o Ibama não tem a estrutura necessária no Centro de Triagem de Animais Silvestres (Cetas), local onde deve ser feita a reabilitação, embora a norma assegure como deveria estar o ambiente. Então, podemos refletir que é algo além de leis, e, sim, de garantia do bem-estar do animal acima de qualquer questão”.

Ana dos Santos ressalta, ainda, que a guarda de animais silvestres sem a devida autorização dos órgãos responsáveis pode incentivar o tráfico de animais silvestres, que é responsável pela retirada de 38 milhões de espécies da natureza no Brasil anualmente. 

"O alto índice de retirada dos animais de seu habitat coloca em risco de extinção um número cada vez maior de animais, além de contribuir com a exploração econômica de florestas. Outro fator importante, é que essas interações podem propiciar crises zoonóticas. Sendo assim, duas grandes problemáticas"

"O alto índice de retirada dos animais de seu habitat coloca em risco de extinção um número cada vez maior de animais, além de contribuir com a exploração econômica de florestas. Outro fator importante, é que essas interações podem propiciar crises zoonóticas. Sendo assim, duas grandes problemáticas"

Ana Cristina Serique dos Santos

A advogada explica também que a retirada das publicações envolvendo os animais silvestres de Agenor nas redes sociais está prevista no Decreto nº 6.514/2008, no artigo 33, que destaca a proibição de "explorar ou fazer uso comercial de imagem de animal silvestre mantido irregularmente em cativeiro ou em situação de abuso ou maus-tratos. Parágrafo único. O disposto no caput não se aplica ao uso de imagem para fins jornalísticos, informativos, acadêmicos, de pesquisas científicas e educacionais”.

“O Agenor, por provavelmente não ter conhecimento em legislação ambiental, acabou enquadrado em alguns artigos da norma, que veda o uso comercial de imagem de animal silvestre, pois o mesmo estaria alcançando incontáveis seguidores nas redes sociais ao ‘dar banho na capivara usando xampu”, ‘vesti-la com roupas’, entre outros comportamentos completamente diversos da espécie, o que pode ser visto como uma exploração do uso de imagem do animal silvestre, nesse caso a Filó”.

Natureza, o melhor destino

Já o Ibama, através de sua área técnica, informa que para o animal silvestre o cativeiro é uma agressão, na medida que impõe restrições ao comportamento natural da espécie. “O fato de existir água ao lado da casa onde a capivara é mantida não significa que o animal esteja em seu habitat, da mesma forma que não bastaria uma árvore no jardim de uma casa para afirmar que um macaco, por exemplo, estaria em seu ambiente natural. O melhor destino para animais silvestres é a natureza. Os Cetas recebem animais silvestres apreendidos, resgatados ou entregues voluntariamente para tratamento e reabilitação e soltura”.

O Instituto ressalta que o Cetas dispõe de médicos-veterinários, biólogos e servidores de diferentes formações capacitados para a reintrodução do animal à natureza. Nesses locais, os animais passam pelos procedimentos clínicos básicos: identificação, marcação, triagem, avaliação e recuperação. Após tratamento e reabilitação, a maioria é encaminhada para soltura. Aqueles que não podem mais ser soltos, por incapacidade física ou de sobrevivência na natureza, são destinados a zoológicos ou empreendimentos autorizados para criação de fauna. E que embora a Lei nº 9.605/98 (parágrafo 2º do art. 29) possibilite ao juiz, em certas circunstâncias, deixar de aplicar a pena, a apreensão do animal permanece como garantia de retorno à natureza para essas espécies.

No caso do influenciador digital, o Agenor, o órgão informa que não se trata apenas de uma capivara. “Ele mantinha outra capivara, que teria morrido, duas preguiças (das quais uma morreu), uma arara, uma paca, uma cutia, dois papagaios, uma coruja e duas jiboias. Há um padrão de uso e abuso de animais silvestres em busca de engajamento e monetização nas redes sociais. A legislação ambiental protege os animais em relação ao cativeiro e ao abuso. A manutenção de animais silvestres em ambiente doméstico, mesmo com aparente liberdade, é prejudicial a essas espécies e deve ser combatida. Ao ser levado para uma casa, o animal perde a possibilidade de exercer seu comportamento natural. Mais que isso, impede que o animal exerça seu papel na manutenção do equilíbrio ambiental. A retirada de espécies silvestres da natureza contribui também para a degradação da biodiversidade nacional”.

E lembra ainda que a divulgação e reprodução massiva de conteúdo audiovisual em que os animais silvestres são criados como pets estimula em outras pessoas o desejo de possuir um também e, consequentemente, o tráfico dessas espécies. Hábitos regionais não podem servir de escudo para a prática de crimes ou atos que impliquem em abuso de animais.

O instituto ressalta, ainda, que não é crime resgatar ou salvar um animal silvestre em perigo ou ferido. Mas após o salvamento, ele deve ser entregue aos órgãos ambientais competentes. E que filhotes tidos como abandonados podem apenas estar aguardando o retorno da mãe de uma busca por comida, por exemplo. Capivaras são de uma espécie gregária. Isso significa que, ao retornar para a natureza, o filhote precisa ser aceito em um grupo. O sucesso do retorno à vida livre depende dessa aceitação.

Segundo o Ibama, o hábito de dormir com animais silvestres, mantê-los no limite de uma propriedade particular, alimentá-los em casa, encorajar comportamentos não típicos da espécie, expô-los ao contato direto com outras pessoas e manejá-los sem a devida licença ambiental, implica em problemas para o próprio animal que não consegue exercer seu comportamento natural e um enorme risco sanitário por conta da transmissão de zoonoses.

E para concluir, o Ibama informa que não há registro de tráfico de capivaras no Espírito Santo. E que o órgão realiza ações de combate à caça todos os anos. Evidentemente essas atividades não se restringem à proteção de apenas uma espécie. E no que diz respeito à febre maculosa e prejuízos à produção agrícola causados por esses animais, o Instituto trabalha com a conscientização da sociedade atingida, indicando práticas de manejo para evitar a infestação de carrapato e manter as capivaras afastadas de áreas agrícolas.

* A coluna É o bicho entrou em contato, através de mensagem direta pelo Instagram, com Agenor Tupinambá e a deputada estadual do Amazonas Joana Darc, mas não obteve retorno. A coluna está aberta aos respectivos depoimentos e atualizará a matéria em caso de resposta

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Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de HZ.

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