A temporada 2024 do futebol brasileiro já acabou, a de 2025 já começou, mas um cenário permanece igual: são raros os casos de jogadores que utilizam o 24 às costas e poucos são os clubes que incluem o número na numeração fixa do elenco. O que explica a perpetuação deste panorama é algo enraizado e ainda muito evidente no universo do esporte: o preconceito.
Um levantamento feito por A Gazeta até o fim do ano passado localizou que apenas três clubes das três primeiras divisões do futebol brasileiro – Internacional, Athletico Paranaense e o Paysandu – possuem jogadores que estampam o número 24 nos uniformes. Nenhum time do Espírito Santo usou do numeral nos campeonatos. Nos casos em que aparece, habitualmente o 24 recai ao terceiro goleiro por conta da numeração fixa exigidas por algumas competições, caso da Copa do Mundo da Fifa.
O Coletivo de Torcidas Canarinhos LGBTQ+ sinaliza que, em 2024, o número de equipes que utilizaram a camisa 24 na Copa São Paulo de Futebol Junior teve um ligeiro aumento em relação ao ano anterior.
Segundo o órgão, 38 dos 128 times que disputaram a competição tiveram um jogador em campo com o número 24 nas costas. Isso equivale a 29,7% do total, percentual superior ao registrado em 2023, quando 27%, ou 34 times, utilizaram a numeração. Ainda que seja um coletivo de torcidas, o Canarinhos LGBT não é uma torcida organizada, mas um grupo que se propõe a discutir a presença e a manutenção da diversidade nos estádios.
Apenas em 2022 um jogador da Seleção usou o uniforme com o numeral: Bremer. Mesmo com toda a carga de preconceito que o número traz em si, o atleta afirmou, em entrevista ao UOL em 20/11/2022, que era irrelevante o fato de ser o jogador 24.

“É uma camisa qualquer como outra. O importante para mim é estar na Copa do Mundo. O número não importa”. Somente naquele ano, com as convocações de 26 atletas, houve maior recorrência ao uso do número internacionalmente.
No passado, o uso do número era estritamente ligado à posição tática do jogador. Hoje, contudo, a escolha dos numerais é, na maior parte, de livre escolha dos atletas. E o 24 não é escolhido. Além da questão numeral, já que culturalmente o 24 é um número associado à homossexualidade por ser associado ao veado no jogo do bicho, há também uma questão importante no debate social contemporâneo que diz respeito à aceitação de pessoas homossexuais no esporte.
Segundo pesquisa publicada em 2023 pelo Observatório Racial do Futebol, em parceria com a Confederação Brasileira de Futebol (CBF), apenas 1% dos jogadores homens das Séries A e B do Campeonato Brasileiro se declarou homossexual ou bissexual. A pesquisa foi realizada de forma anônima. Perguntados se também foram homofóbicos em algum momento de suas carreiras, somente 1,6% dos entrevistados confirmou.
1%
dos jogadores homens se assumiu homossexual ou bissexual
Leda Maria da Costa, pesquisadora do Laboratório de Estudos de Mídia e Esporte (LEME) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e pós-doutora em Comunicação pela mesma universidade, aponta que o baixo número de jogadores gays ou bissexuais se apoia num medo de retaliação. "O atleta sabe que dificilmente terá apoio do clube, dos colegas ou da torcida. Provavelmente, perderá patrocínios e visibilidade. Por enquanto, o futebol ainda é construído em torno dessa exaltação da masculinidade. O jogador calcula as possíveis perdas e pesa na balança. E é muito provável que ele decida continuar no armário".

A pesquisadora prossegue: "Por mais que ele queira, não encontrará um ambiente favorável ou o apoio necessário. Por isso, é importante não colocar toda a responsabilidade sobre os jogadores; a estrutura toda do futebol precisa mudar. Esse jogador vai ter medo do colega, da torcida, e quando perder, vai carregar ainda mais culpa do que em uma situação normal".
A opressão contra pessoas homossexuais extrapola a mera questão do número de tal maneira, que pessoas assumidamente gays receiam frequentar estádios. E jogadores homossexuais escolhem não tornar pública a sua orientação pelo mesmo motivo. Emerson Ferretti, ex-jogador de times como Flamengo e Grêmio, atualmente é presidente do Bahia. E é gay.

Emerson é tácito: “Nem tão cedo um jogador tornará pública a sua homossexualidade”. Onã Rudá, jornalista, fundador da torcida LGBT do Bahia - LGBTricolor - e um dos fundadores do Coletivo de Torcidas Canarinhos LGBT, compartilha da mesma opinião que Ferretti. “Acho que ainda vai demorar um pouco de um jogador em exercício ter essa coragem. As portas se fecham a alguém que assuma sua homossexualidade, infelizmente”.
Leda complementa dizendo que o futebol masculino tem muito a ver com uma performance de heteronormatividade e de padrão de masculinidade.
"É, então, um ambiente que exalta as altas habilidades e esses elementos que são socialmente aceitos. Daí corpos divergentes, como o feminino, têm uma maior tolerância no que diz respeito à questão LGBT — ainda que também haja elementos complicadores. Para elas, há menos entraves para mostrar sua sexualidade de maneira mais livre do que os homens. Tanto que temos jogadoras e diversas atletas que manifestam publicamente seus casamentos e suas parceiras."

Para Leda, a resistência ao uso do número 24 nos uniformes tem valores simbólicos. "A camisa é carregada, simbolicamente, de muitos significados tanto para a torcida quanto para os jogadores, especialmente por sua visibilidade. Além do nome do jogador, carrega as cores do clube, seu escudo e o nome do seu patrocinador. Inserir um número que é tão fortemente associado no imaginário popular à homossexualidade, como o 24, ainda que seja algo bastante infantil, coloca o atleta em grande evidência. Isso incorre no medo de ser vaiado, de sofrer algum tipo de deboche pelos adversários, de desconfiança em relação à sexualidade, especialmente se ele não for gay."
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Clubes capixabas têm jogadores com a camisa 24
Nenhum time do ES usou o numeral em seu uniforme no ano passado.
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Clubes nas três principais divisões do futebol brasileiro usam o número 24
Internacional, Athletico Paranaense e o Paysandu utilizaram a numeração em 2024.
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Jogador atuou pela Seleção com o número 24
Bremer, em 2022.
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Casos de Homofobia no futebol brasileiro em 2024
Episódios foram direcionados ao elenco, equipe técnica ou árbitros
Ferretti ressalta que, num clube de primeira divisão – mesmo entre os ex-atletas – ele seria um dos poucos, bem como um dos primeiros, a falar abertamente sobre o assunto. “Fui um dos primeiros a ter a coragem de falar abertamente sobre isso e declarar com todas as letras, muito por já ser um ex-atleta. Até esperava alguma reação negativa ou ofensa quando assumi minha sexualidade, mas não tive. Para mim, foi uma surpresa muito positiva”. Além de Ferretti, outro dirigente assumidamente gay é Moisés Spilere, do Caravaggio (SC), que em 2024 ascendeu para a primeira divisão do Campeonato Catarinmense.
Emerson Ferretti
Presidente do Bahia
"Se eu estivesse na ativa não falaria sobre isso, por saber que a minha carreira poderia ser prejudicada. Essa é a razão, inclusive, pela qual ninguém fala sobre o assunto. Realmente as portas se fecham. Trazer isso à tona é uma forma de abrir o caminho para outros garotos, e que outros atletas possam falar sobre sua orientação sexual sem sofrerem as consequências [do preconceito] "
Onã afirma que a cultura do futebol é agressiva, masculina, tóxica e ovaciona esse tipo de comportamento [homofóbico]. “Isso justificaria não só a resistência ao assumir ser uma pessoa LGBT como o de usar o número 24 no uniforme, mesmo sem ser gay, já que este é um número associado à homossexualidade. Na cabeça dessas pessoas seria algo como assumir uma fragilidade, ou ser confundido, lido como a um gay”.
O tema é um tabu tão grande que, aponta Ferretti, que nem mesmo os héteros o abordam. Richarlyson, assumidamente bissexual, foi procurado por A Gazeta, mas não aceitou debater o assunto. Por anos, enquanto esteve na ativa, "Ricky" foi alvo de piadas de cunho homofóbico. Só em 2022 se assumiu bissexual, no podcast “Nos Armários dos Vestiários”, do Globo Esporte. Ele afirmou que "Vai demorar muito para melhorar a homofobia no futebol (...). Para a sociedade, não há espaço para ser homossexual no futebol".
Onã Rudá
Jornalista e ativista
"Quando você pensa futebol, o grande astro é o atleta. Daí surge o questionamento: Se um atleta se assume homossexual, os clubes estariam dispostos a comprar essa briga com a torcida? "

Leda também usa Richarlyson como um exemplo no que diz respeito a publicizar ser uma pessoa LGBT.
"Eu aredito que essa resistência a assumir a homossexualidade vem de um ambiente ainda desfavorável a uma livre manifestação da sexualidade. O Richarlyson teve a carreira dele muito marcada por isso. Ainda há também o fator do medo do vestiário [ou seja, o medo que um jogador LGBT assedie um colega heterossexual]. São muitas restrições. O futebol ainda é um ambiente que demonstra uma hostilidade muito grande a qualquer pessoa — especialmente a qualquer homem — que pense em falar abertamente sobre sua sexualidade."
A acadêmica destaca ainda as razões que podem ser entraves a estes jogadores. "Eu imagino que muitos atletas tenham resistência. A questão religiosa também pesa. Muitos jogadores no Brasil têm base neopentecostal. Mesmo que o jogador não seja religioso, ele vai conviver com colegas que cobram uma postura heteronormativa. As conversas com os colegas de profissão devem ser tão intimidadoras que as possibilidades de manifestações livres acabam sendo bem mais complicadas e restritas. Essa é uma responsabilidade que é de todos, e que deveria ser de todos, para anunciar de maneira mais efetiva um compromisso mais sério e mais concreto com a causa contra a homofobia. Isso exige envolvimento da CBF, das federações locais e, obviamente, dos clubes”.
Para Leda, o posicionamento de Ferretti é algo louvável. “O presidente do Bahia esteve no Maracanã com o namorado. Isso é incrível. Acho que o Bahia está conseguindo ser um clube que consegue criar um espaço favorável para a livre manifestação da sexualidade. Os outros estão bastante longe, e a gente tem que considerar algumas possibilidades. Primeiro, o medo. Vivemos em um país muito violento. Não é só no futebol; o Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo e um dos que mais mata mulheres. Signos de feminilidade são atacados em um país que se mostra cada vez mais enraizado no machismo”.
Onã argumenta que o que pode mudar a leitura problemática no que diz respeito à naturalização do uso do número 24 nos uniformes são, justamente, as pautas afirmativas, a discussão do tema nos clubes e uma maior presença da comunidade LGBT nas arquibancadas. “Os times de futebol hoje são uma marca, uma instituição que demanda trato com a sociedade e diálogos. Os clubes precisam ouvir aquilo que é latente no dia a dia das pessoas. Se ele não levar esse em consideração, ele pode inclusive destruir o próprio elenco e seu psicológico, tendo que os atletas se posicionarem individualmente sobre esta questão, e em especial, à vida pessoal do atleta LGBT".
O pesquisador continua: "A mentalidade das pessoas tem mudado e em muito se deve à pressão das marcas e à mudança de linha do Judiciário brasileiro que tem agido em favor da nossa existência. A partir do momento que a gente passa a existir, a ter a narrativa e uma construção de literatura, há o entendimento de que é preciso ter um olhar cidadão para conosco”, analisa Rudá.
Leda Maria da Costa
pesquisadora da UERJ
"Qualquer mudança que aconteça no futebol, eu tenho a impressão de que ela precisa ser legitimada pela vitória. Se o time engajado na pauta LGBT perder ou tiver uma sequência de derrotas, vão dizer que o clube está investindo muito nos "mi-mi-mis" quando deveriam estar investindo no comprometimento ou no resultado. O debate sobre homossexualidade é considerado como algo que não faz parte do futebol, e os clubes e federações não acham que deveriam se preocupar com isso. Consideram uma perda de tempo e que o importante é o clube ganhar e investir no desempenho atlético "
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Jogadores brasileiros se assumiram LGBT’s
Richarlyson e Emerson Ferretti - Ambos após a aposentadoria
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Dirigentes brasileiros são assumidamente homossexuais
Emerson Ferretti, do Bahia, e Moisés Spilere, do Caravaggio (SC)
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Jogador de Seleção é assumidamente bissexual
Richarlyson, ex-São Paulo e Atlético (MG)
“Futebol não é coisa para gay”
Um dos cantos homofóbicos entoados pelos torcedores do Vitória (BA) acabou se tornando famoso. Usado tanto para provocar o rival, o Bahia, como para outros times, como o Doce Mel, também baiano. O Canarinhos LGBTQA+ encaminhou, em 2023, ao Tribunal de Justiça Desportiva do Futebol (TJDF) e ao Ministério Público da Bahia, uma denúncia contra a torcida do Vitória por canções homofóbicas e ataques racistas a Rodolfo Santos, goleiro do Doce Mel. Para Onã, presidente do coletivo, a transformação deve vir, justamente, da arquibancada

Em 2007, durante o programa Debate Bola, da TV Record, José Cyrillo Júnior, dirigente do Palmeiras na ocasião, foi questionado se havia gays entre os alviverdes. Ele respondeu que “Richarlyson quase foi do Palmeiras”. O então jogador se sentiu ofendido e foi à Justiça. O juiz Junqueira Filho sentenciou desfavoravelmente o atleta, com argumentos controversos e abaixo descritos - razão pela qual recebeu pena de censura pelo TJ-SP.
A conexão entre sexualidade, valentia e futebol é algo enraizado. A um zagueiro, por exemplo, espera-se que ele seja feroz, bravo, forte. Um goleiro, como Ferretti, frieza, cautela, firmeza. “Existe essa ideia de que o futebol é um esporte muito masculinizado, que exige força, e, por isso, acham que um atleta gay não tem habilidade para jogar. Isso é uma grande falácia. Eu sou a prova viva disso. Joguei dos oito aos 35 anos, sempre com visibilidade. Minha sexualidade nunca interferiu na minha habilidade de jogar. Da mesma forma, há muitos homens héteros que não têm habilidade suficiente para jogar futebol. A sexualidade não é um determinante para o desempenho no esporte".
Emerson Ferretti ressalta que ser gay e jogador era conviver, especialmente em um jogo de sombras. “Quando havia alguma festa ou churrasco organizado pelos jogadores, eu não participava, justamente para não precisar performar heteronormatividade. Tive sempre que manter minha orientação escondida, e ainda hoje, qualquer atleta homossexual no futebol precisa esconder quem é. Vivi isso e é a pior parte. Jogar futebol era meu sonho, e, quando eu entrava em campo, me sentia realizado. Mas o dia a dia era complicado. Eu tentava ter um comportamento o mais próximo possível de todos os outros atletas héteros, justamente para não levantar suspeitas. É muito cruel que as pessoas tenham que viver escondidas dessa forma”.
Emerson Ferretti
Presidente do Bahia
"Eu acho importante ter alguém como referência. Naquele tempo, eu não tinha ninguém para conversar sobre o assunto ou para me apoiar. Esse é o legado que eu posso deixar fora de campo para o futebol: existir um presidente de um grande clube que seja gay. Isso quebra paradigmas. Esses avanços, que há pouco tempo seriam inimagináveis, mostram que estamos caminhando. É um começo para que o futebol comece a falar mais sobre isso, porque a homossexualidade sempre existiu nesse meio. Ainda assim, há muito preconceito. Embora a sociedade tenha evoluído, e uma parte dela já conviva de forma mais natural com pessoas LGBTQIA+, o futebol parece estar dois passos atrás dessa evolução "

A pesquisadora da UERJ finaliza: "Os jogadores poderiam se manifestar por mais liberdade em algum momento, justamente quando esse debate se tornar mais frequente e houver uma mudança contextual, tanto na sociedade quanto no futebol. A gente não vai tirar o machismo em um mês, dois anos ou dez anos. É um processo longo porque dialoga com uma sociedade que ainda se move por ideias de homofobia, machismo e preconceito. Mas é importante a renovação, e eu acho que ela chegará. Não sei dizer quando, mas acredito que, no dia em que houver mudanças no âmbito da torcida, isso refletirá no campo. Essa resposta em relação à homofobia é uma necessidade. A torcida, de algum modo, pode contribuir bastante para que mudanças sejam dadas — e de preferência, o mais rápido possível."
A reportagem de A Gazeta procurou os três maiores campeões estaduais do ES para que disponibilizassem atletas que pudessem falar sobre o tema. Rio Branco e Desportiva não atenderam aos pedidos, enquanto o Vitória destacou que o clube não utiliza numeração fixa, porém não soube informar a última vez que o número 24 esteve no uniforme de algum atleta.
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