especial sobre HIV/Aids
especial sobre HIV/Aids. Crédito: Freepik/Arte Alessandra Leite

A dor de quem vive com HIV: "Na minha família, nunca me chamam para aniversários"

Infectada pela mãe, estudante vive há 17 anos com o HIV. Mãe de um menino de 2 anos, ela conta como conseguiu impedir que o bebê tivesse o mesmo destino que o dela. Mas o preconceito contra a criança até na família, ela ainda não venceu

Vitória
Publicado em 02/12/2020 às 11h05

“Na escola era sempre eu e a minha melhor amiga. Quando ela faltava, eu brincava sozinha”. É assim que Alice*, de 17 anos, costuma lembrar da infância. Memórias de quem convive com o HIV - e o preconceito atrelado a ele - desde que nasceu. Foi a mãe, Helena*, de 47 anos, que sem saber transmitiu o vírus para a filha.

*Para preservar as famílias, os nomes utilizados nesta reportagem são fictícios

Antes de se relacionar com o pai de Alice, Helena teve um namorado soropositivo. O companheiro, no entanto, nunca disse a ela que tinha HIV. Foi só tempos depois, já envolvida em outro relacionamento, e após o nascimento da filha, que ela descobriu - depois de passar mal - que estava contaminada. A família acredita que Alice tenha sido contaminada ao ser amamentada pela mãe.

"Um dia minha mãe passou mal, desmaiou no meio da rua e levaram ela para o hospital. Lá fizeram os exames e descobriram que ela tinha HIV. Só que eu já tinha nascido, ela já tinha me amamentado", conta Alice.

Helena

Mãe da Alice

"Meu único arrependimento é isso, ter me relacionado com uma pessoa errada. Temos poucos amigos, muita gente tem preconceito ainda"

PRECONCEITO EM FAMÍLIA

Alice sempre tomou os remédios, mas só descobriu o que tinha quando completou 12 anos. A mãe estava ao lado dela quando a equipe médica de um Centro de Referência em IST/Aids da Grande Vitória explicou para a menina o que era o HIV e a importância do tratamento. Mas, mesmo antes disso, a menina já sofria com o preconceito.

Alice

Estudante vive com HIV há 17 anos

"Sabia que precisava tomar remédio, mas não sabia o motivo. Quando me contaram, todo mundo a minha volta já sabia. Os familiares, a vizinhança, as pessoas na escola... Todo mundo sempre me olhou diferente e só com 12 anos eu fui entender o motivo. Na minha família, nunca me chamavam para os aniversários. O preconceito me machucou muito"

A CHEGADA DO WILLIAM

Alice diz não sentir vergonha de viver com HIV, tanto que desde o começo contou ao namorado, que não é soropositivo, o que ela tinha. “Sempre contei para ele, nunca escondi. Ele aceitou e depois de um tempo eu engravidei”, lembra.

A gravidez, ainda na adolescência, assustou. Mas Alice já tinha carga viral indetectável quando a relação sexual sem preservativo aconteceu, e por isso, não infectou o namorado. Passado o pânico inicial, ela se concentrou em fazer tudo direitinho para garantir que o filho nascesse sem HIV.

Faz dois anos que William* chegou. O menino é saudável e não tem o vírus HIV. Após ser acompanhado por mais de um ano em um Centro de Referência de IST/Aids, ele recebeu alta médica, porque exames comprovaram que ele não tem o vírus.

PRÉ-NATAL E TRATAMENTO EVITAM TRANSMISSÃO VERTICAL

Gestantes com HIV precisam controlar a carga viral e se manter indetectável ao longo de toda a gestação, para impedir que o vírus seja transmitido para o bebê. A médica Sandra Fagundes, coordenadora do Programa de IST/Aids da Secretaria de Estado da Saúde (Sesa), explica que os casos de transmissão vertical - de mãe para filho - seriam completamente eliminados se todos fizessem o tratamento corretamente.

“Carga viral é a quantidade de vírus HIV presente no sangue. Isso é detectado por exame. Com o tratamento, em geral, em seis meses a pessoa fica com carga viral indetectável. Uma pessoa com carga viral indetectável não transmite o vírus HIV pelo sexo, embora seja bom frisar que o ideal é que as relações sexuais sejam feitas com preservativo. Os remédios não matam o vírus, eles controlam a situação para o vírus não se multiplicar. Como o vírus está presente em outros locais, em 24 horas que a pessoa parar de tomar o remédio o vírus volta a circular no sangue. A gente trata a grávida semelhante à mulher HIV positiva: todo mês faz exame para saber como está a carga viral dela”, explica a médica.

Sandra Fagundes

Médica e coordenadora do Programa de IST/Aids da Sesa

"Mantendo carga viral indetectável, tomando o antirretroviral direitinho, é 100 % de chance da mãe não transmitir HIV para o bebê"

Em geral, gestantes com HIV não têm parto normal. A cesárea é o caminho mais indicado, especialmente nos casos em que a mulher não faz o pré-natal corretamente e permanece com carga viral alta. Um parto normal, nesses casos, aumentaria as chances do bebê ser infectado por meio do contato com o sangue e com a mucosa vaginal.

Mães com HIV também não podem amamentar. “Tem 20 anos que no Espírito Santo compra fórmula para todo recém-nascido filho de mãe HIV positivo, até 2 anos de idade. Em todas as maternidades públicas têm, a mãe é cadastrada para pegar o leito e AZT líquido (remédio) do bebê proporcional ao peso por 28 dias por prevenção e o leite. O bebê é acompanhado”, esclarece Sandra.

Os bebês, assim como os adultos, são acompanhados em um dos 26 Centros de Referência em IST/Aids espalhados pelo Espírito Santo. Mesmo nos casos em que a mãe se manteve com carga viral indetectável ao longo de toda a gestação, por prevenção, o bebê é medicado ao nascer. Essa é mais uma forma de evitar que a criança seja contaminada.

META É ELIMINAR CASOS DE TRANSMISSÃO VERTICAL

Além disso, o bebê é submetido ao exame de carga viral ao nascer, e repete o mesmo exame com 28 dias de vida e depois aos quatro meses. “Tudo isso é para ter um diagnóstico firmado o mais rápido possível”, afirma a coordenadora do Programa de IST/Aids da Sesa.

Eliminar os casos de transmissão vertical - de mãe para filho - é a principal meta do Ministério da Saúde no Brasil. Nos últimos anos, o Espírito Santo registra, em média, dois casos por ano. Foi assim em 2018, 2019 e também em 2020, onde já há um caso registrado em Vitória e outro em Vila Velha.

Embora o número não seja alto, a Coordenadora Municipal Programa de IST/Aids de Vila Velha, Maria Aparecida Lube, explica por que é tão difícil zerar os casos de HIV por transmissão vertical.

“Um grande problema nosso hoje, em Vila Velha, mas possivelmente no Brasil inteiro, é o usuário de drogas e população de rua. Tudo que a gente faz é potencializar o pré-natal, com parceria com abordagem de rua, Guarda Municipal, mas nem sempre é fácil. Esse caso registrado aqui esse ano, por exemplo, é uma menina que está em uma abrigo de Vila Velha. A mãe, possivelmente moradora de rua, passava por Vila Velha quando entrou em trabalho de parto. Mas não temos registro dela em nenhum dos nossos cadastros, por isso achamos que ela não mora na cidade. Mas a criança nasceu aqui, soubemos do caso pelo abrigo e estamos fazendo o acompanhamento dessa menina”, afirmou.

POR UMA VIDA SEM PRECONCEITO

Alice conseguiu garantir uma vida saudável para o filho, mas não conseguiu evitar que o menino, ainda muito pequeno, tivesse que enfrentar o preconceito. Willian só tem 2 anos e, assim como aconteceu com a mãe, não é convidado para as festinhas de aniversário.

“Incomoda, porque as pessoas não chamam o meu filho para as festas, para as coisas, mesmo ele não entendendo nada. Como sabem que eu tenho HIV, sempre pensam que se eu tenho, ele também tem. É muito preconceito”, revela.

Alice e Helena já contaram para os mais próximos que William não tem HIV e também já tentaram explicar que mesmo elas, portadoras do vírus, não oferecem risco para outras pessoas. Ainda assim, o preconceito permanece.

Alice

Mãe do William e vivendo com HIV há 17 anos

"Eles já sabem o que é, que não tem risco. Mas têm preconceito. Não tenho vergonha de ter HIV, mas por causa disso não pude ter parto normal, não pude amamentar, não posso doar sangue. E machuca ver meu filho, que não tem nada, excluído. É uma doença grave, mas tem tratamento. Precisa haver menos preconceito"

Para além do preconceito, a menina faz um apelo: “As pessoas têm que fazer o teste. Tem gente que tem HIV, mas não conta. Precisa fazer o teste. Se descobrir rápido, é fácil tratar. Tenho uma vida normal, só tomo um comprimido todo dia antes de dormir”.

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