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Tarsila desbanca Monet e vira mostra mais vista da história do Masp

Tarsila desbanca Monet e vira mostra mais vista da história do Masp

Quase meio milhão de pessoas foram à exposição de Tarsila do Amaral em São Paulo

Publicado em 30 de julho de 2019 às 11:39

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A tela "Abaporu", de 1928, de Tarsila do Amaral, em exposição no Masp, em São Paulo, na mostra "Tarsila Popular". (Reprodução/Instagram @masp)

Minutos antes da meia-noite, na virada do domingo para a segunda, as galerias do primeiro andar seguiam abarrotadas. O público testava a paciência de seguranças posando para selfies até o apagar das luzes da mostra mais visitada da história do museu.

Encerrada no fim de semana, depois de quatro meses em cartaz, uma exposição de Tarsila do Amaral destronou Claude Monet como o maior sucesso de público do Masp -402.850 pessoas foram ver a modernista brasileira neste ano, contra 401.201 atraídos pelas telas do impressionista francês em agosto de 1997.

Na semana passada, quando chegou a 350 mil visitantes, Tarsila já tinha se tornado o artista brasileiro mais visto no museu da avenida Paulista, que alardeou cada marco dessa escalada fazendo barulho nas redes sociais e esticando os horários de abertura.

Quando os seguranças começavam a tocar o público para fora das galerias, passados dois minutos da meia-noite, Adriano Pedrosa, diretor-artístico do museu, comemorava olhando a tela de seu celular. "Hoje batemos 6.074 pessoas", dizia ele, antecipando o recorde confirmado no dia seguinte.

Os números não são ultraprecisos, vale lembrar. Isso porque o museu só tem os dados da atual gestão, iniciada há cinco anos. Mas um levantamento rápido das últimas décadas comprova que nada bateu a marca dos 400 mil visitantes no maior museu do país, muito menos a exposição de um artista brasileiro. 

Mais do que a gratificação instantânea de postar o selfie perfeito diante dos quadros, no entanto, a multidão alvoroçada pelas cores de Tarsila talvez buscasse nas galerias do Masp uma sensação que julgava inacessível tão perto de casa. O "Abaporu", alvo de metralhadas de obturadores de telefone, virava ali um parente tropical da "Mona Lisa", a grande obra-prima do Louvre.

Se o museu parisiense foi um palácio da realeza, o prédio modernista erguido por Lina Bo Bardi na avenida Paulista é um templo da fase mais heroica da nossa vanguarda arquitetônica, uma caixa de vidro flutuante tão transparente quanto impenetrável.

Não só pelo preço do ingresso -exorbitantes R$ 40-,  impagável para as classes mais baixas, mas porque museu parece até um palavrão num país que vive um de seus momentos mais agudos de ataque à cultura. Nunca uma mostra de um artista brasileiro foi tão visitada e nunca o Brasil pareceu flertar de forma tão descarada com a ideia de se firmar como o grande império da burrice.

Tarsila, na história da arte e à luz dessa ambivalência, ocupa o incômodo lugar de um agente duplo. E é inegável entender as muitas fases de sua obra como reflexo disso.

Num primeiro momento, a celebrada década de 1920, ela foi a caipirinha alternativa em Paris, uma dama da elite cafeeira que plasmou em suas telas um exotismo calculado. Estava em sintonia com o que alguns estudiosos chamam de auge da negrofilia parisiense, capitaneada por Picasso, e disposta a injetar o calor dos trópicos no seio da vanguarda europeia.

Sua obra canonizada pela crítica sugava o poder sedutor da gente, da fauna e da flora de uma ex-colônia ancorada na escravidão para decantar toda essa potência nas superfícies anódinas, resplandecentes de um cubismo dúbio. Suas figuras parecem mecânicas e artificiais, mas não na tentativa de seguir um plano estético e conceitual traçado de antemão e sim para se adequar ao filtro plástico mais superficial das modas da época.

Depois, naquilo que talvez fale bem mais de perto à realidade daqueles que nunca pisaram num museu mas encararam horas de espera nos dias de entrada grátis, Tarsila amansou seus filtros geometrizantes e retratou altares improvisados nas casas de interior, anjinhos e santinhos, festas do povo. Desafiou o que ela mesma chamava de "gosto apurado" para se entregar à exuberância do popular ou do caipira, aquilo que, décadas mais tarde, seria o Brasil da bossa nova em atrito com aquele das modinhas de viola.

Quando batizou sua exposição mais vista de todos os tempos "Tarsila Popular", o Masp deixava claro que era o Brasil da feira de frutas, o das procissões na roça e do Carnaval que moldava as dezenas de obras da artista fora de sua fase arquitetada para impressionar olhares estrangeiros.

Mas encaixou no mesmo recorte aquilo que catapultou Tarsila ao núcleo duro do que agora se entende como a mais nova modernidade. A artista enfim encontrou abrigo na concepção plural e esgarçada desse movimento que tardou a dominar o pensamento dos maiores e mais influentes museus do planeta.

Em Nova York, o MoMA acaba de desembolsar US$ 20 milhões por "A Lua", um quadro menor da fase mais aclamada da artista -a negociação concluída há pouco impediu que a pintura estivesse na mostra.

O "Abaporu", talvez a obra mais célebre a deixar o país na história recente, detona discursos ufanistas a cada uma das muitas vezes que aparece numa exposição em solo nacional. A tela comprada pelo argentino Eduardo Costantini na década de 1990 por pouco mais de US$ 1 milhão foi a vedete inevitável da mostra, mesmo que sua última passagem por São Paulo, há 11 anos, tenha levado só 108 mil pessoas à Pinacoteca.

Em todo caso, o quadro do Malba, de Buenos Aires, é só uma ponta de um triângulo. Enquanto "Abaporu" e "Antropofagia", ambas na mostra, são a síntese plástica mais bem-sucedida do "Manifesto Antropófago" de Oswald de Andrade, marido da artista à época da criação desses trabalhos, uma terceira obra foi a raiz dessa espécie de santíssima trindade da modernista.

Mais controversa das telas de Tarsila, "A Negra" foi o quadro abre-alas da mostra, num gesto ousado de seus organizadores -a visão estilizada da velha ama de leite da fazenda da família da artista no interior paulista não deixa de carregar todas as marcas de uma pintora atravessada pela força do furacão das vanguardas e um apego ainda que torto e fetichista à sua terra natal.

Tarsila pintou o quadro em 1923 em Paris, vista de perto por seu mestre à época, Fernand Léger. Não espanta que a visão então prosaica de uma negra velha anônima tenha se transformado em máscara de feições animalescas, desproporcional em relação às dimensões do quadro. Ela é mais seios, mais lábios, mais nariz e pés que qualquer outra coisa. No lugar da delicadeza feminina, a brutalidade feroz de um bicho enjaulado.

Enquanto a artista pintava "A Negra", Oswald de Andrade discursava na Sorbonne sobre como faltava ao Brasil se reconciliar com sua identidade negra e indígena ao adentrar a modernidade, mesmo que a visão de Tarsila lançada sobre a ex-escrava fosse a de uma branca enquadrando sua serviçal de pele escura castigada pelo trabalho braçal.

Tarsila, em seu autorretrato de vestido vermelho pendurado ao lado da "Negra", faz com a mão o mesmo gesto da ama de leite, como se visse algo da própria identidade nela.

Sua mãe preta, já dizia o crítico venezuelano Luis Pérez-Oramas, que organizou a retrospectiva da modernista no MoMA no ano passado, seria "a mãe de todos nós". Gilberto Freyre, lembra a pesquisadora Irene Small no monumental catálogo da exposição do Masp, já celebrava -não sem controvérsia- a figura da mulher negra escravizada como a "bela mulata" pronta para "amamentar o Brasil inteiro".

Talvez as hordas que lotaram o museu da avenida Paulista estivessem mesmo ali à procura de uma linha evolutiva à qual se filiar num país sem memória. Tarsila foi alçada à estranha condição de matriarca de Pindorama, lembrando Oswald, a artista na origem de tudo e de todos.

Os maiores públicos do Masp

1º 'Tarsila Popular' (2019)

402.850

2º 'Monet: o Mestre do Impressionismo' (1997)

401.201

3º 'Picasso: Anos de Guerra 1937-1945' (1999)

202.522

4º 'Salvador Dalí no Masp' (1998)

200.143

5º 'Caravaggio e Seus Seguidores' (2012)

185.117

6º 'Histórias Afro-Atlânticas' (2018)

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