Crítico de cinema e apaixonado por cultura pop, Rafael Braz é Jornalista de A Gazeta desde 2008. Além disso é colunista de cultura, comentarista da Rádio CBN Vitória e comanda semanalmente o quadro Em Cartaz

"Todo Dia a Mesma Noite": série sobre a Boate Kiss é dolorosa e respeitosa

"Todo Dia a Mesma Noite", minissérie da Netflix sobre o incêndio da Boate Kiss, em Santa Maria, respeita familiares ao não transformar incêndio em entretenimento

Vitória
Publicado em 25/01/2023 às 21h38
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Minissérie "Todo Dia a Mesma Noite", da Netflix, reconta tragédia da Boate Kiss, em Santa Maria. Crédito: Guilherme Leporace/Netflix

Qual o distanciamento necessário para transformar uma tragédia em entretenimento? Talvez não haja uma resposta, mas a demanda (e a oferta) por conteúdos baseados em histórias reais nunca foi tão alta; de documentários sobre crimes até hoje não resolvidos a crimes brutais recontados com pouca ou nenhuma preocupação com a família das vítimas. Para cada produto como o ótimo podcast “Praia dos Ossos” há uma narrativa como “Dahmer”, sendo difícil estabelecer qualquer limite do que é ou não entretenimento.

Baseado no doloroso livro homônimo de Daniela Arbex, a minissérie “Todo Dia a Mesma Noite” reconta a tragédia que matou 242 pessoas, a maioria jovens, na Boate Kiss, em Santa Maria, Rio Grande do Sul, há dez anos quase exatos, em 27 de janeiro de 2013. O livro transformado em minissérie pela Netflix é uma obra jornalística, um trabalho baseado em centenas de horas de entrevistas e apuração, no depoimento de sobreviventes, familiares das vítimas, enfermeiros, médicos e bombeiros, um texto que demandaria muito cuidado para ser adaptado de forma precisa e respeitosa.

“Todo Dia a Mesma Noite”, a minissérie da Netflix, encontra um bom tom para contar a história. Com roteiro de Gustavo Lipsztein, que tem entre seus créditos a boa série “Um Contra Todos” e o constrangedor “Polícia Federal: A Lei é Para Todos”, a série tem muito mais acertos do que equívocos.

Um dos grandes acertos da série é não utilizar o incêndio e as mortes como um clímax. Ao invés disso, o texto traz a tragédia logo no primeiro episódio. A série tem início nos apresentando vários jovens diferentes e suas famílias, cada um com um motivo diferente para estar na festa. Como o roteiro adapta nomes, cada um desses personagens representa um perfil de jovem que estava naquela noite na boate e não se sabe exatamente o que acontecerá com cada um deles.

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Minissérie "Todo Dia a Mesma Noite", da Netflix, reconta tragédia da Boate Kiss, em Santa Maria. Crédito: Guilherme Leporace/Netflix

A sequência do incêndio é dolorosa, principalmente a que se passa no banheiro, com corpos pelo chão, fumaça e apenas as luzes dos celulares que recebiam chamadas de pais e mães dos jovens. A partir deste ponto, porém, a série dirigida por Júlia Rezende muda seu foco para os pais em busca de explicações e justiça e também para alguns sobreviventes.

O arco dos familiares é ótimo, com pais e mães vividos por Thelmo Fernandes, Debora Lamm, Bianca Byington, Raquel Karro, Paulo Gorgulho e Bel Kowarick, inspirados nos pais que fundaram a Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria, lidando com o luto, com a dor da ausência, mas também buscando penalizar os responsáveis. Compartilhamos com eles a dor - “Todo Dia a Mesma Noite” não é uma série fácil - e também a busca por justiça.

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Minissérie "Todo Dia a Mesma Noite", da Netflix, reconta tragédia da Boate Kiss, em Santa Maria. Crédito: Guilherme Leporace/Netflix

Nos quatro episódios restantes, a série investe nessa luta em diferentes frentes. É curioso como, a princípio, o roteiro dá indícios de dedicar mais tempo às justificativas da banda e do dono da boate, mas acertadamente prefere dedicar seu tempo aos pais. A série se utiliza de saltos temporais que levam os personagens a momentos decisivos da história. Assim, acompanhamos indiciamentos, julgamentos e decisões nem sempre bem-vindas, mas que reforçam a luta dos pais e até conferem urgência ao texto - é bom ressaltar que ninguém foi devidamente punido, mesmo com todos os indícios apontando para dolo eventual de diversos envolvidos e até para casos de corrupção de autoridades.

Enquanto a história dos pais é sempre tensa, com ótimas atuações e carregada de emoção, há, em contrapartida, a impressão de acompanharmos pouco as histórias dos sobreviventes, representados por dois jovens que gradualmente aprendem a lidar com as cicatrizes físicas e mentais deixadas pela noite de 27 de janeiro de 2013. Outros pontos passíveis de crítica são o sotaque gaúcho caricato de alguns atores, que desaparecem em alguns momentos, e a exposição dos diálogos, principalmente no primeiro episódio (por exemplo: dentro da boate, em uma conversa natural, uma pessoa fala "Santa Maria tem sete universidades e 40 mil alunos"), mas nada disso tira a força do texto.

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Minissérie "Todo Dia a Mesma Noite", da Netflix, reconta tragédia da Boate Kiss, em Santa Maria. Crédito: Guilherme Leporace/Netflix

A opção por focar na luta por justiça talvez seja justamente para colocar novamente os holofotes sobre o caso. Dez anos depois, políticos e autoridades já escaparam, mas ainda correm processos contra a banda e o dono da boate. Se essa é a ideia, “Todo Dia a Mesma Noite” cumpre sua missão; a série desperta indignação com o ocorrido e empatia com os pais das vítimas, convidando o espectador a, como disse Arbex em entrevista à “Folha de São Paulo”: “construir esse caso na memória coletiva do Brasil para que o que te indignou ao ver a série não aconteça mais. A gente precisa revisitar essa história e muitas outras, porque é urgente”.

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