Gustavo Souza Correa é psicólogo e graduando em gerontologia. Entusiasta da longevidade, trabalha há mais de 18 anos com a temática do envelhecimento. Nesta coluna, nos convida a ressignificar a passagem dos anos e trilhar uma jornada de autoconhecimento para viver mais e melhor.

É possível perceber a passagem dos anos e não ver o próprio envelhecer?

Olhou novamente e teve a certeza desesperadora do que via ali retratado: a sua imagem denunciava o tempo e aparentava uma pessoa de uns 90 anos

Publicado em 10/10/2023 às 08h01
Idoso olhando no espelho
Olhou novamente e teve a certeza desesperadora do que via ali retratado: a sua imagem denunciava o tempo e aparentava uma pessoa de uns 90 anos marcada pelo peso de sua senilidade. Crédito: Shutterstock

A verdade é que as primeiras mudanças são tão lentas que mal se notam, e a gente continua se vendo por dentro como sempre foi, mas de fora os outros reparam". (Gabriel García Marquéz)

Abriu os olhos e não sabia dizer se a noite havia sido de descanso ou atravessada por uma agitação inexplicável.

"Essas bobagens desse tal de inconsciente!". 

Talvez só precisasse de mais alguns minutos de sono.

Notou seu corpo pesado. Olhou para o lado, sem enxergar direito, mas teve certeza de que não a tinha visto. " Já deve ter ido para a ginástica", pensou. 

Naquela manhã, acordou às 07h15. Dessa vez, bem depois do despertador que tocava todos os dias de forma precisa.

"Vou ligar pra loja. Tem uma entrega de dois espelhos com moldura pra hoje de manhã. Sem mim, nada funciona por lá".

Tinha certeza que havia programado o alarme para às 06h10. "Bobagem. Tudo bem, afinal o que são cinco minutos, não é?!"

Confuso, sentia-se diferente. Melhor dizendo, estranho. Estranho também lhe pareceu seu quarto.

"Deixa pra lá! Ela e essa mania de se exercitar... acho melhor ficar com os conselhos do Dr. Delfim".

Lembrou-se daquele número: 1.432.729.226 era a quantidade de vezes que o coração estaria programado pra bater, disse o médico.

"Não se pode desperdiçar!".

Se divertia ao repetir essa história quando os amigos lhe convidavam pra 'pelada', enquanto ele se esquivava de qualquer esforço físico desnecessário, se esmerando a cuidar do churrasco e “provar” a cerveja até o ponto para a resenha.

Mas dessa vez, não achou graça. Pelo contrário, embora não tivesse certeza, sentia-se triste. Afinal, nunca foi muito de prestar atenção ao que sentia.

De repente, uma dor estranha tomou conta de suas costas. Tentou mexer as pernas, e o intento produziu apenas um leve deslocamento do seu joelho. Um estalo. Sentiu o lençol frio tocar a sua pele. Desistiu.

"É, estou mesmo estranho hoje. Deve ter sido aquele vinho de ontem à noite (ou isso foi na terça?). Deixa pra lá!".

Algo vibrou no canto do quarto. Tentou ouvir, ao longe, o que se passava em outro cômodo da casa, mas tudo parecia muito distante.

“Jogar a coberta para o lado foi bem simples, ele precisou apenas inspirar um pouco e ela caiu sozinha. Mas os passos seguintes se mostraram difíceis (...) e quando ele, enfim, de um modo quase selvagem e juntando todas as suas forças, jogou-se à frente sem tomar precauções, acabou escolhendo a direção errada e bateu com violência aos pés da cama; a dor ardente que sentiu ensinou-lhe que justamente a parte inferior de seu corpo de momento talvez fosse a mais sensível.” ¹

Agora tudo doía. Queria ir ao banheiro, mas não tinha certeza de onde era. Ali no chão, concluiu que realmente estava diferente.

"Preciso de um cigarro! Eu já almocei hoje? Pensou, desorientado".

Pensou também em chamar por ajuda. Desistiu.

"Afinal, o que meus filhos vão pensar se me virem assim, ainda mais a essa hora".

Uma ideia lhe ocorreu. Talvez, usando o telefone, pudesse ligar para alguém, a fim de ter algum entendimento do que estava se passando.

Arrastou-se. Tudo doía!

O último exame de vista já contava de longa data, mas até ontem, se não lhe falhava a memória, achava enxergar bem. Ergueu com dificuldade a cabeça, apertou bem os olhos e os arregalou em seguida.

A imagem no espelho do armário em frente a cama o fez congelar. Petrificou.

Olhou novamente e teve a certeza desesperadora do que via ali retratado: a sua imagem denunciava o tempo e aparentava uma pessoa de uns 90 anos marcada pelo peso de sua senilidade.

Confuso. Sentiu a cabeça girar, mas a memória não lhe ajudava a resgatar o que havia feito de si na segunda metade de sua vida.

Pela janela, o anúncio do carro de som usava uma música de fundo que lembrava sua adolescência: “Yesterday a got so old / I felt like could die (Ontem fiquei tão velho / senti que poderia morrer).”²

Embora não soubesse a tradução, escutá-la agora fazia um outro sentido. Como não se percebeu da passagem dos anos e não viu o próprio envelhecer?

Até onde a memória lhe permitia, reconheceu a sua fuga. Sentiu o peso do tempo e as suas marcas, antes lentas, acentuadas na imagem distorcida em frente ao espelho. Agora não dava mais pra fugir. A conta de uma vida dedicada a olhar para fora, tornara-se impagável.

A velhice enfim havia lhe alcançado da pior forma possível, como que de repente. E agora queria a vida de volta. Queria se levantar, mas não podia.

Deitado ali no chão do quarto, um lampejo incomum e quase poético lhe ocorreu...

"Acontece é que esse negócio de envelhecer nos pega primeiro no corpo... e a mente, sonhadora que só ela, segue presa a idade em que já não nos reconhece(mos)".

Um som atravessa o quarto: “Go on go on / Just walk away/ Go on go on/Your choice is made (Vá em frente / Apenas vá embora / Vá em frente / Sua escolha está feita)”³.

06h10, conforme programado, e a música lhe tira de “sonhos intranquilos”.

"Preciso de espelhos novos", pensou, ainda ofegante.

  • Referências
  • ¹Franz Kafka em “A Metamorfose”
  • ²”Ontem eu fiquei tão velho/ Eu senti que poderia morrer” (Inbetwin Days, The Cure)
  • ³”Vá lá, Vá lá / Apenas em frente/Vá lá, vá lá/Sua escolha está feita” (Inbetwin Days, The Cure)

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