Publicado em 3 de outubro de 2024 às 11:11
"Quem vota no candidato que quer legalizar o aborto é cúmplice do aborto", diz a senadora Damares Alves (Republicanos-DF), em vídeo compartilhado em sua conta no Instagram no início de setembro, a poucas semanas da eleição de 6 de outubro, em que brasileiros vão escolher novos prefeitos e vereadores em todo o país.>
"Adianta vocês orarem para que o Brasil não tenha aborto e vocês estarem apoiando alguém que é a favor do aborto?">
Na postagem, que busca alertar contra o voto em supostos candidatos comunistas que estariam nas igrejas, a ex-ministra de Jair Bolsonaro (PL) conta que a gravação foi feita originalmente em outra eleição municipal, de 2016, e reforça: "É exatamente o que eu continuo pensando ainda hoje".>
Há oito anos, Alves era apenas assessora de outro parlamentar, o senador Magno Malta (PL-ES). Em 2019, foi alçada à chefe da pasta da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do governo Bolsonaro.>
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Ao fim do governo, foi eleita para o Senado e, hoje, como uma das principais vozes do campo conservador, tenta colocar o aborto no centro do debate eleitoral das eleições municipais deste ano junto com a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro, atual presidente do PL Mulher.>
As duas lançaram em agosto a campanha "Mulheres Pela Vida", que defende "a vida desde a concepção".>
A campanha estimula legisladores conservadores, em especial mulheres, a apresentarem projetos de lei contrários ao aborto — mesmo nos casos autorizados em lei, como a gravidez fruto de estupro — nas câmaras municipais e assembleias estaduais, disponibilizando modelos prontos dessas propostas.>
Uma dessas propostas busca instituir em 8 de outubro no calendário municipal ou estadual o Dia do Nascituro, termo jurídico dado ao feto, acompanhado da Semana de Defesa e Promoção da Vida, com ações dentro dessa temática.>
Outras duas tentam alterar a Lei Orgânica e o Plano Plurianual de municípios e Estados para estabelecer como seus objetivos "valorizar a vida e adotar políticas públicas de saúde, de assistência e de educação preventivas ao aborto voluntário".>
Atualmente, o aborto é permitido no país em três situações: quando a gravidez decorre de estupro; quando há risco de vida da mãe; ou quando o feto é anencéfalo (o que impede a vida após o parto).>
Apenas o Congresso Nacional ou o Supremo Tribunal Federal têm poderes para mudar essas regras, seja para restringir ou ampliar o direito ao aborto no país.>
No primeiro semestre, deputados federais conservadores tentaram criminalizar a interrupção da gravidez após 22 semanas de gestação, mesmo em casos decorrentes de estupro, mas a discussão acabou suspensa no Congresso após forte reação de parte da sociedade.>
Pesquisas de opinião, como levantamento do instituto Datafolha de junho deste ano, mostram que não há maioria no país a favor de mudar as regras atuais — seja para restringir ou liberar mais.>
No entanto, tentativas tanto de limitar quanto de promover o acesso ao aborto legal têm posto essa questão também em destaque na política local de cidades país afora.>
Em março deste ano, por exemplo, a Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro rejeitou por ampla maioria um projeto de lei que criava o "Programa de atenção humanizada ao aborto legal e juridicamente autorizado", com objetivo de melhorar o atendimento em casos autorizados de interrupção da gravidez.>
A proposta foi elaborada em 2017 pela então vereadora Marielle Franco (PSOL), assassinada no ano seguinte.>
Já em Belo Horizonte, a Câmara de Vereadores aprovou em abril uma lei que ficou conhecida como "censo do aborto", obrigando a divulgação de estatísticas de aborto no site da prefeitura e no Diário Oficial do Município.>
A nova legislação, porém, está suspensa por decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), que avaliou que a nova regra fere o direito à privacidade das mulheres, ao obrigar a Prefeitura "a publicar/expor dados pessoais sensíveis, incluindo menores de idade".>
Opositores da lei viram uma tentativa de constranger médicos e mulheres que realizassem aborto legal, argumentando que o DataSUS, do Ministério da Saúde, já reúne dados sobre aborto legal.>
Os apoiadores, por sua vez, disseram que o levantamento municipal traria mais dados para políticas de prevenção.>
"O objetivo é ter transparência. Eu sou uma vereadora pró-vida, e quero fazer políticas públicas para chegar antes da violência, antes do estupro, para a gente proteger verdadeiramente essas mulheres e meninas", afirmou a autora do projeto de lei, a vereadora Flávia Borja (Democracia Cristã), segundo reportagem de julho do jornal Folha de S.Paulo.>
Já em Santa Maria, no interior gaúcho, a Câmara Municipal aprovou, no final de 2023, dois projetos de lei do chamado "pacote pró-vida", que acabaram vetados pelo prefeito, Jorge Pozzobom (PSDB).>
Um determinava que os médicos deveriam oferecer a mulheres com direito ao aborto legal a realização de uma ultrassonografia para escuta dos batimentos cardíacos do embrião ou feto, antes do procedimento. >
O outro determinava a fixação de cartazes sobre supostos danos físicos e psicológicos relacionados ao aborto em hospitais e consultórios médicos.>
Projetos de lei com teor semelhante, apresentados pela vereadora candidata à reeleição Comandante Nádia (PL), aguardam votação na Câmara de Porto Alegre.>
Após críticas, porém, a proposta sofreu alteração para retirar a previsão de que fosse oferecido o ultrassom às grávidas antes do aborto legal.>
À BBC News Brasil, a vereadora diz que esse trecho foi incluído equivocadamente, ao usar como base para sua proposta um modelo de projeto de lei que já estava pronto. >
Ela afirma que o principal objetivo do seu "pacote pró-vida" é ampliar a informação disponível para mulheres que pretendem abortar sobre como é realizado o procedimento.>
"Essa mulher [que pretende abortar] tem o direito de saber que ela vai ser anestesiada de uma forma geral, vai ficar de perna aberta em uma mesa ginecológica, como é feita a retirada do bebê, que é por sucção, que as partes vão ser se extirpadas dali, para onde esses restos vão ser levados", argumenta a vereadora, relatando de forma imprecisa o procedimento, que, a depender da idade gestacional, pode ser realizado em casa, apenas com medicamentos.>
"[São informações para] que ela entenda que o aborto não é a retirada de um dente siso. É algo muito mais grave e que pode ter sequelas psicológicas nessa mulher, pode ter sequelas físicas.">
A dedicação de câmaras municipais ao tema é alvo de críticas. >
A advogada Ana Clara de Carvalho Polkowski, cofundadora do Instituto Planejamento Familiar (IPFAM), considera que as iniciativas para aprovar leis sobre aborto em Estados e municípios são inconstitucionais, porque apenas o Congresso Nacional pode restringir ou ampliar esse direito.>
"Embora esse tema esteja quente na campanha municipal, não é de competência das câmaras de vereadores ou dos Estados. Nosso regime jurídico é diferente do dos Estados Unidos, onde Estados podem legislar sobre o tema", ressalta.>
Na sua visão, o fato de o direito ao aborto ter se tornado um tema central na eleição presidencial americana, em curso no momento, está aumentando o apelo do assunto na eleição municipal brasileira.>
Lá, o aborto era amplamente liberado desde os anos 70, mas a Suprema Corte americana derrubou essa decisão em 2022 e autorizou os estados a adotarem restrições.>
O candidato republicano, o ex-presidente Donald Trump, apoia a mudança, enquanto sua adversária, a candidata democrata Kamala Harris, atual vice-presidente, quer a volta do direito amplo à interrupção da gravidez.>
Para Polkowski, os municípios brasileiros deveriam estar mais focados em melhorar seus serviços de planejamento familiar e de prevenção da gravidez indesejada, com mais oferta de métodos contraceptivos e serviços de saúde para adolescentes.>
Já nas escolas, defende a advogada, as prefeituras deveriam capacitar suas equipes a identificar casos de abuso sexual.>
"Estão debatendo [nas câmaras municipais] um assunto que não têm competência legal para debater, para não jogar luz no que os municípios têm dever de cumprir, como garantir método contraceptivo e cumprir a lei do planejamento familiar", reforça.>
Para a vereadora de Porto Alegre Comandante Nádia (PL), os temas não se excluem.>
"A vida acontece no município. Então, é função do município se envolver em pautas que são nacionais, mas que vão ter repercussão muito grande nos municípios", defende.>
A BBC News Brasil solicitou entrevista a Damares Alves e Michelle Bolsonaro, mas elas não quiseram se manifestar.>
Em São Paulo, maior cidade do país, o resultado da eleição pode ter impacto direto no acesso à interrupção da gravidez em casos previstos em lei.>
O tema ganhou destaque no município com a decisão do governo de Ricardo Nunes (MDB), prefeito candidato à reeleição, de interromper o serviço do aborto legal no hospital maternidade Vila Nova Cachoeirinha.>
A unidade era referência neste tipo de atendimento e, segundo movimentos de mulheres na cidade, a única do município a interromper gestações em estágio avançado.>
A justificativa da Prefeitura foi liberar a equipe do hospital para outros procedimentos, como cirurgia de endometriose. >
Questionado sobre o assunto ao longo da campanha, Nunes tem dito que foi uma decisão técnica e que o aborto legal é oferecido em outras unidades municipais.>
Hoje, as pesquisas eleitorais mostram que o prefeito disputa uma vaga no segundo turno da eleição em São Paulo com os candidatos Guilherme Boulos (PSOL) e Pablo Marçal (PRTB).>
O primeiro integra um partido que defende abertamente o direito ao aborto, mas tem evitado colocar o tema como algo central em sua campanha. >
Já o segundo se coloca fortemente contra a interrupção da gravidez e já disse que "não vai haver facilitação para isso [acesso ao aborto]" em um eventual governo seu.>
A vereadora paulistana Silvia Ferraro (PSOL), candidata à reeleição, diz que Boulos está comprometido com a ampliação do serviço na cidade.>
"A gente espera que o Boulos ganhe e que uma das primeiras medidas seja reabrir o serviço de aborto legal do Hospital Vila Nova Cachoeirinha", diz Ferraro à BBC News Brasil.>
"Nossa batalha continua sendo para que o aborto legal exista de fato na cidade de São Paulo, e não só em gestações avançadas, mas em mais hospitais, inclusive com acolhimento decente [para as gestantes]", reforçou a vereadora, que integra a Bancada Feminista, um mandato coletivo com outras mulheres.>
Seu mandato destinou recursos de emendas parlamentares para o serviço de aborto legal do Vila Nova Cachoeirinha, antes de ele ser interrompido. >
Foi também responsável por uma emenda ao projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para 2025 que tentava reabrir o atendimento, mas a proposta foi rejeitada pela maioria da Câmara Municipal.>
Apesar da esperada volta do serviço em uma eventual gestão Boulos, o candidato não colocou a proposta oficialmente em seu plano de governo. >
Questionado sobre o tema durante a corrida eleitoral, ele tem dito que é a favor do aborto legal, sem fazer disso uma bandeira de campanha.>
Para a cientista política Nara Salles, pesquisadora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a decisão de Boulos de não dar destaque a um tema caro ao seu partido tem a ver com seu bom posicionamento nas pesquisas, com chances reais de chegar ao segundo turno.>
"Quando o candidato está menos competitivo, tem mais liberdade para estar mais próximo do seu eleitorado mais cativo", analisa Salles.>
"Quando está mais competitivo, há essa necessidade de ampliar a sua base. Então, o candidato evita tocar em pontos que possam ser delicados para grande parte do eleitorado.">
Salles é uma das coordenadoras do projeto Vota Aí, banco de dados que reúne os planos de governo de candidatos a prefeito em todo o país, desde a eleição de 2012.>
Um levantamento feito a pedido da BBC News Brasil nas últimas disputas municipais, identificou que a temática da interrupção da gravidez ainda é rara nesses documentos, mas mais comum entre concorrentes da esquerda.>
O termo apareceu em 40 planos de governo em 2012, depois em 48 em 2016, chegando a 105 em 2020.>
Já neste ano, há 61 menções ao tema num universo de cerca de 15 mil planos analisados, com destaque para candidatos do PSTU (16), PSOL (15) e PT (13).>
Os números surpreenderam Salles, que esperava uma incidência maior do tema nas campanhas pelas prefeituras.>
"Como o aborto é um tema muito importante no debate ideológico que a gente tem vivido no Brasil nos últimos anos, eu achava que, como marcador de posição, iria ser mais mencionado [nos planos de governo]", diz a pesquisadora.>
"Mas os números mostram que acabam prevalecendo [propostas para] resolver questões que são mais concretas [na vida das cidades], em vez de se posicionar num tema delicado, em que o candidato pode perder voto.">
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