O que um padre aprendeu com Matheus, um jovem traficante

Existe muito afeto nas relações entre os envolvidos com o tráfico; esses laços podem se tornar a ponte para transpormos o abismo que construímos entre os mundos que habitamos

Publicado em 17/07/2019 às 16h36

Padre Kelder José Brandão Figueira*

Há algum tempo penso em escrever sobre a necessidade de encontrar Cristo entre os traficantes. Não se trata de uma apologia ao tráfico e, muito menos, uma visão romântica desta atividade que é transversal à estrutura do Estado, onipresente na sociedade e que movimenta montanhas de dinheiro no mundo inteiro. Este é o primeiro artigo de uma série em que narro a descoberta de valores cristãos na relação com os traficantes.

Há cerca de 30 anos, quando entrei no Seminário da Arquidiocese de Vitória, comecei a conviver diretamente com o tráfico. O espaço fica no Morro São José, em Vitória, onde o movimento do tráfico é histórico. O uso e a comercialização de drogas na ladeira de acesso são comuns, mas os seminaristas nunca foram molestados. Certa vez, um disse um palavrão e, imediatamente, os outros disseram que era para ele ter respeito porque estava na porta da Igreja.

Já padre, em Jacaraípe, em Serra, ao produzir o documentário “Meninos da Guarani”, pude desmistificar muitas crenças sobre o tráfico e a violência. Compreendi que tanto um quanto o outro é uma construção social.

Com 14 anos era gerente de uma boca. Perguntei o que fazia com o dinheiro que ganhava e ele disse que deixava na boca, para comprar armas, porque não tinha como gastar

Quando fui padre na Grande São Pedro a relação se tornou mais intensa. Batizei muitas crianças cujos pais atuam no tráfico. Durante as peregrinações com a imagem de São Pedro, eles enfeitavam o morro, faziam fogueira e recebiam os fiéis com entusiasmo. As procissões de um bairro a outro ajudaram a romper a barreira do medo. Ao fim delas, muitos afirmavam que pela 1ª vez tinham ido à determinada Comunidade, vencendo o medo e o preconceito.

Por mais de dois anos, acompanhei o drama de uma mãe e um adolescente, o Matheus. Ele foi catequizado, era coroinha e tinha envolvimento com o tráfico desde os 11 anos. Com onze anos um traficante o defendeu em uma briga na escola e, assim, ficaram amigos. Com 14 anos era gerente de uma boca. Perguntei o que fazia com o dinheiro que ganhava e ele disse que deixava na boca, para comprar armas, porque não tinha como gastar. Ao pedir para conversar com o dono da boca para interceder por sua saída do tráfico, assustado ele disse que jamais faria isso, pois não queria que me arriscasse por causa dele.

Em 2012, ele fugiu de São Pedro para Serra. Em 2013, com as Exéquias, despedi-me dele no cemitério, no mesmo dia em que os jovens da Arquidiocese foram enviados para a Jornada Mundial da Juventude com o Papa no RJ. Ele foi assassinado com sete tiros. Matheus me ensinou que existe muito afeto nas relações entre os envolvidos com o tráfico e que esses laços podem se tornar a ponte para transpormos o abismo que construímos entre os mundos que habitamos.

*O autor é vigário episcopal para Ação Social, Política e Ecumênica da Arquidiocese de Vitória

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