Publicado em 28 de maio de 2025 às 06:39
Em sua obra-prima, o escritor paulista Mário de Andrade (1893-1945) descreve Macunaíma como "o herói sem nenhum caráter".>
Já nas tradições milenares do povo Macuxi, que habita regiões de Roraima, Guiana e Venezuela, Macunaíma está no mais alto panteão de deuses — e é reconhecido como um grande pajé, uma figura sábia que criou muitas coisas.>
Esse é apenas um exemplo de como as histórias indígenas são pouco conhecidas do grande público e muitas vezes até substituídas, ou ignoradas, por outras narrativas.>
Mas parece que as coisas estão mudando: há um movimento literário que ganha cada vez mais força ao dar voz e destaque a novos autores indígenas.>
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Essa é a avaliação da escritora Trudruá Dorrico, que fez mestrado na Universidade Federal de Rondônia e concluiu um doutorado em Letras na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).>
Ela também realiza uma série de ações nas redes sociais — como a iniciativa "Leia Mulheres Indígenas" — e participa de eventos públicos para promover essa literatura.>
"Esse movimento tenta mostrar que a vida indígena é complexa e tem um paradigma diferente do mundo moderno e ocidentalizado", diz a pesquisadora, que é da etnia Macuxi.>
"Atravessada por 500 anos de violência colonial, essa literatura consegue expor feridas, mas também faz reivindicações.">
Filha de mãe guianense e de pai peruano, Dorrico defende que "ler autores indígenas permite ter contato com contextos diversos e expande nossa visão de mundo, já que os autores vêm de comunidades, povos, biomas e regiões de todo o Brasil".>
Mas por onde começar? Quem são os escritores indígenas que vem se destacando na literatura nacional?>
Durante as pesquisas acadêmicas, Dorrico procurou mapear as obras que já haviam sido publicadas no país por autores indígenas.>
Ao longo do processo, ela identificou alguns marcos que ajudaram a fomentar esse movimento literário. E o primeiro deles foi a promulgação da Constituição Federal de 1988.>
"O aparecimento dos escritores indígenas é análogo à Constituição, quando se reconheceu pela primeira vez a plurietnicidade do país e a ideia de que integrantes de povos indígenas podem ser cidadãos brasileiros e permanecer com a sua identidade", lembra ela.>
A especialista avalia que, antes de 1988, todos os projetos de integração nacional realizados por vários governos — como o Serviço de Proteção aos Índios (SPI), a Fundação Nacional do Índio e o Estatuto do Índio — tinham como objetivo "acabar com a identidade indígena" ao tentar incorporar esses indivíduos na sociedade brasileira.>
Seguindo essa linha de raciocínio, a nova Constituição serve como um marco para entender que o indígena pode manter sua cultura e tradições, ao mesmo tempo em que é um cidadão reconhecido pelo Estado brasileiro.>
"Não por coincidência, as primeiras obras assinadas por autores indígenas foram publicadas no país entre os anos 1980 e 1990", diz Dorrico.>
Entre as pioneiras, estão Oré Awé Roiru´a Ma: Todas as Vezes que Dissemos Adeus, de Kaka Werá, e Histórias de Índio, de Daniel Munduruku.>
Pouco depois, no início dos anos 2000, o próprio Daniel Munduruku se tornou um dos criadores de premiações importantes que estimulam novos autores indígenas e o uso desses materiais em salas de aula — caso dos concursos Tamoios e Curumin, respectivamente.>
Outro marco importante aqui foi a promulgação da lei 11.645 de 2008, que tornou "obrigatório o estudo da história e cultura indígena e afro-brasileira" nas escolas.>
"Isso democratizou a demanda por literatura indígena nas salas de aula de todo o país e estimulou professores a buscarem novas obras e leituras", observa Dorrico.>
A pesquisadora cita um quarto ponto de virada: a pandemia de covid-19.>
"De repente, promotores de cultura, organizadores de eventos literários, o pessoal da universidade, estavam todos juntos na internet e houve um aumento do interesse pelos autores indígenas", destaca a especialista.>
A chegada de Ailton Krenak na Academia Brasileira de Letras em 2023 é mais um capítulo importante nesta história, uma vez que ele foi o primeiro indígena a ser eleito para integrar a instituição.>
Mas como uma pessoa interessada no assunto pode conhecer mais sobre literatura indígena?>
Dorrico cita três pontos que considera importantes — e o primeiro tem a ver com a ideia de acessar uma cultura diferente da sua.>
"Ao ler um romance da Coreia do Sul, por exemplo, você automaticamente é colocado de um código diferente, que envolve linguagem, estrutura de sociedade, ordem do livro, vestimentas, ritmo e sons das palavras, entre outros", compara ela.>
"O mesmo acontece no contato com obras da literatura indígena, com a diferença de que elas se valem da língua portuguesa para serem publicadas", continua a pesquisadora.>
"Nessas ocasiões, você entra em contato com o desconhecido para expandir o seu mundo e mergulhar em um universo cultural diferente.">
Dorrico cita o que acontece com sua própria etnia: o povo macuxi fala o idioma karib, tem uma culinária própria, vestimentas específicas, cantos tradicionais…>
Obras produzidas nesse contexto, portanto, seguem esse tecido de referências, tradições e culturas, que apresentam diferenças em relação ao resto do Brasil.>
"Eu sempre convido os professores a lerem as obras de autores indígenas nessa perspectiva plurinacional", sugere ela.>
O segundo ponto levantado pela especialista envolve a oralidade (ou o costume de contar e transmitir histórias pela voz e a conversa).>
"A oralidade não é um fundamento da literatura indígena. A oralidade é uma forma de sobrevivência", diferencia ela.>
"Não temos documentos escritos, porque muitos deles foram destruídos com a colonização. Nossas línguas foram perseguidas e caçadas. A oralidade foi o modo pelo qual nosso povo conseguiu manter-se vivo.">
Em terceiro lugar, Dorrico acredita que a literatura indígena precisa ser entendida a partir do paradigma de que os povos originários "nunca se divorciaram da terra".>
"Os povos indígenas são sociedades que estão conectadas com a terra, com o território e com a floresta", diz Dorrico.>
"Essa é uma relação que foi construída há muito tempo. Os indígenas reconhecem os espíritos e conversam com eles. Os sonhos são importantíssimos e constituem uma instituição séria", afirma a pesquisadora.>
"Precisamos entender que todos os autores indígenas vêm de povos que ainda são casados com a floresta e têm essa filiação milenar com a própria terra. Quando você compreende esses paradigmas, é possível entender melhor essa literatura.">
Mas isso, claro, não quer dizer que autores indígenas só escrevem sobre coisas relacionadas ao folclore ou à cultura da qual fazem parte.>
"Eles têm liberdade poética para abordar tudo, e inclusive muitas vezes nem mencionar a identidade indígena. Eles falam sobre nascimento e morte, sobre criação do mundo ou histórias sobre aventuras", diz ela.>
Questionada sobre escritores que fazem parte desse movimento literário, Dorrico responde que o grupo é diverso — e há opções para todos os gostos e gêneros literários.>
"Lia Minápoty e Yaguarê Yamã têm obras maravilhosas de aventura e ação", cita ela.>
"Há também o poeta Tiago Hakiy, o Roni Wasiry Guará, a Eliane Potiguara, o Edson Kayapó…">
A pesquisadora também citou como exemplos os trabalhos de Graça Graúna, Ytanajé Coelho Cardoso, Auritha Tabajara, Cristino Wapichana, entre outros.>
O próprio Daniel Munduruku, citado anteriormente, é uma das grandes referências do movimento — e foi reconhecido com dois prêmios Jabuti e homenagens da Academia Brasileira de Letras e da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).>
Ele é um dos responsáveis pela Bibliografia das Publicações Indígenas do Brasil, uma iniciativa que tenta compilar tudo que é produzido por autores que vêm dos povos originários.>
Já Dorrico organizou pela editora Companhia das Letrinhas o livro Originárias: Uma Antologia Feminina de Literatura Indígena, que faz uma compilação de contos.>
Durante o doutorado na PUC-RS, ela mapeou autores indígenas e obras publicadas. Para organizar o trabalho, ela fez uma classificação de acordo com os seis biomas brasileiros.>
"Encontrei escritores na Amazônia, na Caatinga, na Mata Atlântica, no Cerrado e no Pantanal. À época, só não identifiquei ninguém nos Pampas.">
A chamada literatura indigenista se vale de elementos das etnias que habitam (ou habitavam) o Brasil para criar uma ideia de identidade nacional ou alguns mitos fundadores.>
Os exemplos clássicos aqui são Iracema e O Guarani, de José de Alencar (1829-1877), e o já citado Macunaíma, de Mário de Andrade.>
O que essas obras revelam sobre o país — e como elas interagem com o novo momento da literatura indígena?>
Na visão de Dorrico, esses livros fazem parte de movimentos literários importantes, mas não podem ser lidos sozinhos ou sem um contexto adequado.>
"Eles contam uma parte da história, mas omitem muita coisa. Eles podem servir de ponto de contato para a gente criar diálogos com a contemporaneidade e o que é produzido nos dias de hoje", opina ela.>
"Em Iracema, José de Alencar fala do povo Tabajara localizado no topo da Serra da Ibiapaba, no Ceará.">
"Mas atualmente nós temos a Auritha Tabajara, que vem da mesma comunidade do topo da Serra da Ibiapaba. Ela tem cordéis muito bonitos em que contesta aquela imagem de uma Iracema submissa e bela que estava de acordo com os ideais colonizadores", diz Dorrico.>
Já sobre Macunaíma, a especialista lembra que Mário de Andrade teve contato com os relatos de viagem do explorador alemão Theodor Koch-Grunberg (1872-1924) pela região de Roraima na década de 1920.>
"Essa é uma obra inteiramente construída com base nos valores do meu povo, só que o personagem principal tem uma mácula, é um 'herói sem nenhum caráter'", lembra ela.>
Dorrico analisa que o movimento modernista, do qual Andrade foi um dos baluartes, tentou "trazer valores estéticos e elementos indígenas para a literatura brasileira", como a antropofagia e uma certa ideia de ócio.>
"Mas esses princípios e valores morais muitas vezes são usados para desumanizar os povos indígenas e se apropriar dos territórios deles", critica ela.>
Na avaliação da pesquisadora, a criação de uma estética brasileira a partir do modernismo tenta criar "um ideal brasileiro baseado em valores indígenas, como o sagrado e o místico, mas sem qualquer presença dos povos indígenas".>
"E a antropofagia foi sempre retratada por cronistas e viajantes literários como algo selvagem e um argumento de que os povos originários precisavam de Deus, da Igreja e do Estado", acrescenta ela.>
"Mas o genocídio dos povos indígenas não era selvagem? E o assassinato de milhares de famílias? E o extermínio de populações inteiras?">
Para Dorrico, "a literatura indígena vem para amadurecer a literatura brasileira".>
"A literatura indígena contribui e discute noções e elementos culturais que ficaram intactos durante muitos séculos", pontua ela.>
A pesquisadora vê com otimismo o fato de as pessoas adotarem cada vez mais o termo "literatura indígena".>
"Há pouco tempo, havia uma timidez em classificar esse movimento. Mas as pessoas foram abraçando a ideia e cada vez mais usam esse nome sem medo", observa ela.>
"Se você procurar em arquivos de universidades, já encontra pesquisas e artigos que analisam essa questão.">
Entre possíveis avanços, Dorrico aponta para a necessidade de falar da literatura indígena em grandes provas e concursos nacionais.>
"A gente nunca teve uma questão interpretativa sobre esse tema no Enem", destaca ela.>
"As perguntas sobre questões indígenas são sempre documentais, referenciais e nunca levam em conta a perspectiva literária.">
"O Brasil esquece muito rápido dos povos indígenas. Precisamos continuar a falar sobre o assunto e incentivar mais ações", conclui a especialista.>
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