Publicado em 27 de setembro de 2024 às 05:42
A pescadora Izabel Serrão esteve a vida inteira a poucos passos de um rio.>
Primeiro, na canoa onde morava com pai, mãe e irmãos nas águas dos rios Jaú e Negro, no interior do Amazonas. >
Depois, em um “beiradão”, a área imediatamente às margens de um rio — até ancorar raízes em uma área alagada do Cacau Pirêra, comunidade na cidade de Iranduba (AM), na região metropolitana de Manaus.>
Mas os 38 anos vendo o sobe e desce natural das águas amazônicas não prepararam Izabel para a situação atual de seca dos rios e da estiagem na região.>
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“É o nosso costume ver o rio subir e descer durante o ano. Mas, neste ano, veio muito rápido a seca, pegou todo mundo de surpresa”, conta ela à BBC News Brasil.>
Izabel agora está "presa" em terra. Com um barco encalhado e outro recolhido, ela não tem como sair para pescar, já que ao redor tudo virou areia — onde há água, a cerca de 2 km de sua casa, virou uma lagoa sem saída.>
De acordo com dados da Defesa Civil do Amazonas, o rio Negro na região de Manaus está a menos de dois metros de alcançar seu nível mais baixo, registrado na seca histórica de 2023.>
Na quinta-feira (26/9), o rio estava medindo 13,92 metros na régua da cidade, apenas 1,22 metro a mais que a cota mais baixa já registrada em 121 anos de medição: 12,70 metros.>
Segundo o Serviço Geológico do Brasil, o curso d'água registrou nas últimas semanas uma taxa de redução diária, em média, de 20 cm.>
Se o ritmo for mantido, isso poderia levar ao recorde histórico ainda em 2024. >
A expectativa, porém, é que a baixa do rio comece a andar a passos mais lentos, explica o professor e doutor em Clima e Ambiente Rogério Marinho, da Universidade Federal do Amazonas (Ufam).>
“Está muito alarmante, mas a gente tem a esperança que não chegue ao nível do ano passado por causa de alguns sinais [como a subida no nível de rios] em alguns pontos da bacia do rio Negro”, explica Marinho.>
"Mas deve ficar entre as maiores secas desses 120 anos de monitoramento.">
Outros rios amazônicos, porém, já chegaram em 2024 às suas mínimas históricas, como o Solimões, em Tabatinga (AM), e o Madeira, em Porto Velho (RO). >
O próprio rio Negro também está no menor nível registrado em regiões do interior do Estado, como na cidade de Barcelos.>
Em Manaus, a maior cidade da Amazônia, o Solimões se junta ao rio Negro para formar o rio Amazonas.>
As 62 cidades do Amazonas estão em estado de emergência e, segundo o governo estadual, mais de 500 mil pessoas já estão afetadas pela seca diretamente.>
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No Cacau Pirêra, cerca de 90 famílias vivem em flutuantes, moradias que ficam sobre a água — ou, em tempos de seca, encalhadas.>
Segundo a comunidade local, 90% das famílias sobrevivem da pesca.>
Quando há água, Izabel Serrão já está no rio às 4h: "É a hora boa para pegar peixe".>
Na volta, o barco costuma estar cheio de pacus, sardinhas e tambaquis.>
Em tempos “normais”, mesmo na época da vazante do rio, os pescadores da comunidade ainda conseguiam sair com seus barcos — se não da porta de casa, a alguns metros de caminhada.>
Mas, desde 2023, o trabalho tem sido completamente paralisado.>
"Como ano passado a seca foi muito grande, não deu tempo de o rio encher. Muito lugar onde a água chegava nem chegou mais", conta Izabel, apontando para os bancos de areia que cercam a comunidade.>
"Eu queria uma explicação para isso. Devolva nossa água quem tiver com a nossa água.">
O geógrafo Rogério Marinho, da Ufam, explica que “naturalmente o rio tem seu trabalho de depositar sedimentos e aparecer praias na sua história geológica”, mas que a frequência e a intensidade atual dos fenômenos não é normal.>
“As comunidades ribeirinhas relatavam que demorava 20, 30 anos para vir uma seca dessa. Agora, esses eventos estão acontecendo em menos de 10 anos e mais forte”, diz Marinho.>
O geógrafo explica que a intensidade da seca, em parte, pode ser explicada pelos fenômenos do El Nino, que aquece as águas do Oceano Pacífico, dificultando a formação de chuvas na Amazônia.>
Além disso, diz, há um aquecimento das águas do Oceano Atlântico, que também reduz a quantidade de chuva na região.>
No Cacau Pirêra, quanto mais antigo o morador, maior a sensação de que o que se vive é sem precedentes.>
Na última vez que saiu para pescar, no meio de setembro, Ronilson Silva, 38 anos de vida e de comunidade, jogou a rede seis vezes e conseguiu apenas 25 peixes — um número para lá de modesto para os milhares que conseguiam levar para vender no mercado local.>
“A gente está tudo encalhado, com os barcos atolados, sem saída. E ainda tem mais 30 dias para secar, então, acho que vai ser a maior estiagem da história”, diz Ronilson.>
Além de pescador, ele também é gari fluvial do município, recolhendo lixo dos moradores dos flutuantes. “Mas agora, eu faço coleta por terra.”>
O ministro de Desenvolvimento Social, Wellington Dias (PT), chegou a anunciar em entrevistas que o governo federal deve criar um auxílio emergencial para pescadores atingidos pela seca na região Norte do Brasil.>
O benefício seria uma antecipação do "Seguro Defeso", normalmente dado a pessoas que vivem da pesca artesanal durante o período em que não podem realizar suas atividades devido à chamada "piracema", quando há o movimento migratório de peixes no sentido das nascentes dos rios, com fins de reprodução.>
Questionado pela BBC News Brasil sobre valores e de quando a medida seria implementada, o ministério repassou a demanda para outra pasta, a de Integração e Desenvolvimento Regional, que, por sua vez, disse não ter responsabilidade sobre auxílio a pescadores. >
Até a publicação desta reportagem, o Ministério de Desenvolvimento e Assistência Social não deu detalhes sobre ajuda aos profissionais da pesca. >
O governo do Amazonas disse que têm realizado a entrega de ajuda humanitária às comunidades ribeirinhas de Iranduba, com 2,5 mil cestas básicas dsitribuídas. >
Já a Prefeitura de Iranduba disse que iniciou a distribuição de cestas básicas e água potável nas "comunidades rurais do município mais afetadas por esse fenômeno natural" e "mais isoladas".>
Os moradores do Cacau Pirêra ainda não foram contemplados. >
O Amazonas também tem tido o maior número de queimadas desde que o Inpe começou a reunir dados, em 1998.>
Segundo o órgão, até o dia 25 de setembro, o Estado do Amazonas registrava 6.695 focos de incêndio neste mês, totalizando 21.930 focos de incêndio no ano. >
É um aumento de 66% em relação ao mesmo período do ano passado.>
O programa de observação da Terra da União Europeia Copernicus também divulgou recentemente que regiões da Amazônia e do Pantanal enfrentaram suas piores temporadas de incêndios em 22 anos, incluindo o Amazonas.>
O índice, que mede emissões de carbono decorrente de incêndios florestais, mostra que, no Amazonas, a poluição esteve significativamente acima da média durante julho, agosto e setembro.>
Quando a reportagem da BBC News Brasil esteve em Iranduba, era possível ver ao longe diversos focos de incêndio. O cheiro de fumaça é constante.>
Em Manaus e sua região metropolitana, tem sido rotina a população acordar com a cidade encoberta pela poluição resultante das queimadas. >
No ano de 2023, segundo o relatorio da empresa IQAir, Manaus foi a capital com a pior qualidade do ar, na média, no Brasil.>
O governo do Amazonas disse que o Corpo de Bombeiros vem atuando desde junho na região do Cacau Pirêra com equipes em prontidão na operação Céu Limpo.>
Desde o início de junho até quarta-feira (25/09), foram combatidos 18.740 focos de incêndio no Estado, segundo o governo.>
Pelo que observa ao seu redor, a pescadora Izabel Serrão acredita que o desmatamento tem contribuído para o cenário em 2024. >
“Onde não tem árvore, o sol se aproveita, né? Como todos sabem, o sol seca tudo”, diz ela.>
Mas, apesar do cenário desanimador, os pescadores do Cacau Pirêra não pensam em sair do lugar de onde vêm nem de deixar de fazer o que fazem.>
“Pescar é o que o sei fazer. Preciso desse rio para continuar o nosso trabalho, para continuar se sustentando e também botando o alimento [peixe] na mesa das pessoas”, diz Izabel.>
Ronilson pensa da mesma forma. “É o que tenho, é onde eu sei viver. Se você gostasse do lugar onde você mora, você gostaria de deixá-lo para trás?”, questiona o pescador.>
“Eu também não”.>
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