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Crack: internação é a solução?

Crack: internação é a solução?

Caso de empresária de Vila Velha morta por usuário, que a atingiu com um vergalhão, expõe o drama da ruas e traz mais uma vez o debate sobre a validade da internação compulsória

Publicado em 13 de maio de 2018 às 00:38

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Isolamento reforça a discriminação

 João Chequer | Médico, especialista em dependência química 

As diversas formas de adicções, incluindo as dependências químicas, compõem um dos fenômenos de mais difícil resolução da humanidade. São enfermidades biopsicossociais que acometem cerca de 10 a 12% da população ocidental. Ocorrem em pessoas procedentes de todas as camadas do tecido social, que, quase sempre, começam pelo uso do álcool, progredindo para a utilização de drogas mais potentes e invasivas que comprometem sua saúde física, mental e emocional.

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O Estado legitima junto à população o arrastão oficial que rouba os corpos da sua vida por meio violento

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Uma das graves consequências da dependência química é a erosão das condições econômicas e financeiras do portador, além do aniquilamento familiar, levando, frequentemente, os dependentes à situação de rua. Então passam a tentar todas alternativas para obtenção da droga de escolha, inclusive a prostituição com os riscos inerentes a essa prática e os crimes que saturam as manchetes dos noticiários. Diante da dificuldade de se obter o interesse do paciente em submeter-se a tratamento, em situações extremamente graves, quando não mais se tem condições de lidar com a pessoa que está colocando em risco sua situação pessoal, a estabilidade da família e/ou da sociedade, a privação da liberdade de ir e vir pode se fazer essencial para que se vislumbre alguma possibilidade de devolver dignidade a alguns dependentes químicos, inconscientes e largados à sua própria sorte nas ruas de muitas cidades do país.

O que tem acontecido, entretanto, com a questão da internação compulsória é que o recolhimento compulsório usado como dispositivo para impor o tratamento aos usuários tem por base o argumento de que essas pessoas “perderam o governo da sua própria vida”, fazendo com que o Estado intervenha sobre elas. Com esse discurso, o Estado legitima junto à população o “arrastão oficial” que rouba os corpos da sua vida por meio violento, os tira da rua encarcerando-os para um suposto projeto terapêutico que comprovadamente é precário e ineficaz.

Ineficaz socialmente, porque o isolamento reforça a discriminação; Ineficaz tecnicamente, pois se sabe que o índice de recaídas para os que passaram por tratamento compulsório é em torno de 96 a 97%. Como diz um reconhecido autor, é preciso “parar de perseguir o doente e perseguir a doença”.

Outro aspecto fundamental da internação compulsória é o destino que se dá ao paciente. Há clínicas que recebem os internos sem condições adequadas. Sedam os pacientes e os mantêm sob influência de substâncias psicoativas potentes por semanas ou meses, sem apoio de uma equipe pluridisciplinar. Depois os devolvem à rua, sem qualquer vínculo com algum serviço de pós-tratamento, sem suporte familiar, sem direcionar o paciente a algum empregador para algum treinamento técnico-profissional.

E é sempre bom lembrar que essas clínicas recebem muito dinheiro do Estado para o tratamento de dependentes. Outras são boas, contudo os pacientes, se não dispõem de pós-tratamento, voltarão inexoravelmente para a rua depois de um tempo numa espécie de oásis. Três a quatro por cento se recuperarão...

Por uma sociedade sem cracolândia

 José Nazar | Médico psiquiatra e psicanalista 

Sim, sou a favor das internações compulsórias para os viciados em crack que “vivem” em cracolândias. É uma questão de saúde pública, que pede por uma dura intervenção. O mais drástico e difícil - e é o que o viciado mais teme - é ter que passar pelo tratamento inicial de uma “síndrome de abstinência”.

Isso não é sem erros, isso não é sem dor, isso não é sem uma margem de risco. Mas é melhor do que nada fazer. Que me desculpem, mas eu não vejo outra saída senão a de uma intervenção maior dos princípios básicos de uma saúde pública.

O que é um viciado em crack? É um doente mental, tomado de uma depressão grave! O que é um viciado em crack fazendo parte de uma cracolândia? É um doente mental em estado gravíssimo que necessita viver em guetos, já que é ali que ele encontra um lugar para seguir o roteiro de um suicídio silencioso, no âmbito de um anonimato. Ali ele se mata para não matar: a raiz do suicídio não é a mesma do homicídio?

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Internar, mesmo que seja à revelia do viciado, ou deixar tudo como está? Vamos continuar desviando nosso olhar?

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Uma cracolândia seria o grito máximo de um pedido de ajuda: socorro! Ali tem de tudo, prostituição infantojuvenil... O viciado age sem pensar, não encontra uma saída para viver de outra maneira, pois ele mesmo há muito já se tornou a própria droga.

Um crime de homicídio praticado por um usuário reacendeu o debate sobre o que fazer com os dependentes de crack nas ruas. Internar, mesmo que seja à revelia do viciado, ou deixar tudo como está? Vamos continuar desviando nosso olhar?

A questão das cracolândias diz respeito ao campo da saúde pública. Precisamos acolher e iniciar um tratamento especializado, pois são doentes que estão se matando sob o véu de uma alienação grupal.

E se fosse o seu filho ou sua filha que estivesse perdido no mundo das drogas, vivendo nos escombros de uma cracolândia, qual seria a sua posição? Você seria contra ou a favor de uma internação hospitalar, à força? Nesse caso, a coisa seria diferente?

De fato, essa não é uma questão simples de se resolver. Se é que algum dia ela venha a ser resolvida, pois parece que alguns indivíduos necessitam da droga para se destruírem em suas depressões. A sociedade, como um todo, deveria participar, praticar um pouco mais de cidadania, dizer o que acha de uma situação tão difícil quanto delicada como essa. Isso porque todos estamos no mesmo barco, fazemos parte dessa tragédia.

O problema requer uma medida drástica dos governantes – diga-se, corajosa, saudável num certo sentido –, que resolva olhar de frente para essa questão limite, levando a sério uma iniciativa de se criar uma política pública mais agressiva, contundente, radical, em relação aos excessos do uso abusivo de drogas, mais especificamente do crack. Veja, em se tratando de doenças da cabeça, não existe uma medida justa, correta, sem dor. As intervenções propostas neste plano inicial de combate aos excessos da pulsão de morte geram consequências. A possibilidade de se acertar carrega, conjuntamente, uma certa margem de erros.

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