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'Jogo de espelho': confira a crônica de Maria Sanz Martins

"Jogo de espelho": confira a crônica de Maria Sanz Martins

"Como forma de rendição, vou escrever esse texto num fôlego só. Sem mirar seu peito, nem azeitar as palavras, vou de frente, de primeira..."

Publicado em 10 de maio de 2018 às 20:15

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Crônica . (Tiko Giorgadze/ Unsplash)

Como forma de rendição, vou escrever esse texto num fôlego só. Sem mirar seu peito, nem azeitar as palavras, vou de frente, de primeira, desafiando sua majestade, a “sedução” – essa energia poderosa que deveria ser natural e brilhante, mas quando mobilizada para obter poder, se torna estranha.

Seduzimos por força do hábito, por estratégia e por defesa. Perceba, no fundo, ainda que inconscientemente, temos um plano... É que dentro de cada um de nós habita uma criança ferida, uma memória dolorida que se cristalizou em pequenos “pactos de vingança” que, por sua vez, se manifestam de formas que a gente... Rá! A gente sequer imagina.

De modo que todo jogo de sedução, ou de poder, como queira, envolve esse aspecto discretamente perverso que nos leva à tentativa de dominar ou controlar o outro. Falei difícil, mas é aquilo de todo dia mesmo: diminuir para nos sentirmos maiores, e apontar defeitos para nos sentirmos melhores.

E esse jogo, que reflete o que escondemos por dentro, parece irreversível.

Pois há de haver muita compaixão (por si) para ser capaz de remover as camadas que camuflam nossas inseguranças. Mas é compaixão “lato sensu”! Da capacidade de se amar, se perdoar, de se abraçar. De acolher os próprios defeitos, deixar cair as máscaras e encarar o espelho.

Ou seja, além de não ser fácil, leva tempo... Tempo e coragem de auto-conhecimento.

No mundo ocidental, é possível dizer ainda que ser afetado pelos “jogos de poder”, ou truque do jogo de espelho, de que falo, é inevitável, ou muito difícil. Uma, porque a autoridade imposta pela religião, pela cultura patriarcal e pela educação formal, são formas clássicas de perpetuação (dos sintomas) desses padrões limitantes. Outra, porque as relações de dominação e posse, obediência e controle, atenção e chantagem, estendem-se por todas as camadas de nossa estrutura social, começando em casa – marido, mulher, pais, filhos, funcionários, vizinhos, amigos, periquitos e papagaios.

Como diria o sábio, “é da vida...”.

É, mas é uma pena! Que bom seria se pudéssemos abrir mão do desejo de controlar o que o outro pensa e sente, e no lugar de viver para “seduzir”, passássemos a viver para usufruir.

Fazer o quê? Seduzimos automaticamente, o tempo inteiro, mesmo sem perceber. Pudera, treinamos pra isso, porque desde cedo compreendemos que dominar a atenção alheia é uma forma de manter a (prazerosa) sensação de que somos amados, admirados e protegidos. – E é até engraçado, quanto mais afetivamente carentes, mais comprometidos com aquela criança ferida em busca de recompensa – em algum sentido.

Outra vez, enquanto nos mantivermos no cativeiro habilmente desenvolvido por nós mesmos, seguiremos buscando aprovação do mundo. Seduzindo, machucando ou se deixando machucar para satisfazer e servir à identificação com a dor elementar que nos habita.

Finalmente, o encontro, frente a frente, com essa nossa criança magoada não deveria ser evitado, nem postergado, mas promovido. Porque de um jeito ou de outro, mais cedo, ou mais tarde, ou para passar de fase, acolhê-la, abraçá-la e perdoá-la será preciso.

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Nota: a ideia era fazer um texto sem rodeios. Não deu certo, percebo. (Minha menina ferida quer ser especial ainda. Mas estamos no caminho. De mãos dadas a ela, admito: ser simples pra mim, ainda é complicadíssimo).

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