RIO DE LAMA E LUTA

Tsunami causado por rompimento de barragem de rejeitos em Mariana deixou cicatrizes que duram uma década no ES e em MG

Ora sofrendo com enchentes, ora sendo afetadas por secas extremas, as comunidades cortadas pelo Rio Doce, no Espírito Santo e em Minas Gerais, não imaginavam o que estava por vir: um tsunami de lama tóxica, causado pela ação humana, ainda mais cruel que os eventos climáticos, com reflexos até então incalculáveis.

Uma década se passou desde o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), em 5 de novembro de 2015, mas os rastros da tragédia ainda são perceptíveis nos 45 municípios feridos pelo pior desastre ambiental da história brasileira. As consequências vão além dos vestígios deixados pela onda poluente nessas cidades.

Os 50 milhões de metros cúbicos de rejeitos da mineradora Samarco despejados no meio ambiente soterraram vidas, oportunidades e sonhos, além de negócios, trabalho e renda de muitas famílias que dependiam do Doce para beber, pescar, plantar e criar animais. A quantidade de resíduos equivale ao volume de água de 25 mil piscinas olímpicas ou de 20 lagoas Jacuném (Serra-ES).

Muitos tentaram recomeçar nos últimos dez anos, mas as marcas da catástrofe — que matou 19 pessoas, degradou 250 hectares de Mata Atlântica e dizimou mais de 14 toneladas de peixes — persistem ao longo do curso d’água até o litoral capixaba.

As cicatrizes podem ser vistas na natureza: áreas agora infrutíferas, deformações em muitos animais, como as tartarugas, e recursos hídricos contaminados por metais pesados, conforme revelam estudos feitos por órgãos ambientais e pelas Universidades Federais do Espírito Santo e de Minas Gerais.

Há também os problemas socioeconômicos gerados, como mortalidade de pequenas empresas e desemprego na Bacia do Rio Doce. Estudos da Fundação Getúlio Vargas, dentro do Projeto Rio Doce, apontam que muitos moradores de Baixo Guandu, Colatina, Linhares, Marilândia, Serra, Fundão e Aracruz perderam suas fontes de renda, especialmente nos setores de pesca, agricultura, artesanato, comércio, turismo e extração de areia.

“Mesmo antes do acidente, o Rio Doce não estava saudável. As mineradoras vinham sorrateiramente despejando resíduos da lama no rio, em menor quantidade. Esse desastre foi o golpe de misericórdia”

Paulo Andreas Buckup, especialista em ictiologia do Departamento de Vertebrados do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Imagem do fotógrafo Vitor Nogueira mostra o encontro do rio de lama com o mar, em Regência

O número de pessoas declaradamente desempregadas nesses segmentos saltou 319%, passando de 612 em 2015 para 2.562 em 2021. Somente em 2016, 1.400 pescadores ficaram sem renda.

Além dos produtores rurais e pescadores, aldeias indígenas e comunidades quilombolas dos dois estados também convivem até hoje com as consequências da tragédia de Mariana.  Estima-se que, ao todo, 2,2 milhões de habitantes foram impactados direta e indiretamente pelo desastre.

A lama percorreu 675 km dos 853 km de extensão do rio até chegar à foz e desembocar no mar de Regência, em Linhares. A região abriga uma das maiores biodiversidades da costa brasileira, sendo lar de 255 espécies de aves, 47 de anfíbios, 54 de répteis e 54 de mamíferos. Como as substâncias avançaram para a única área de desova regular da tartaruga-gigante no Brasil, o Projeto Tamar realizou uma operação de emergência para remover os ninhos da praia.

No início de 2016, as compensações iniciadas pela Samarcojoint venture (consórcio empresarial) das mineradoras brasileira Vale e britânica BHP — às pessoas físicas não foram suficientes para aplacar a dor de parte das vítimas da lama, que consideravam as indenizações insuficientes para cobrir tudo o que perderam desde o fatídico 5 de novembro de 2015.

Um público se sentiu isolado, como mulheres que atuavam como marisqueiras ou vendedoras de peixes, além de donos de pousadas e trabalhadores formais e informais do setor turístico.

Fora dos eixos margeados pelo Doce, existiam aqueles que também reclamavam dos prejuízos. Eram moradores de municípios vizinhos costeiros, como Aracruz, Fundão, Serra, Conceição da Barra e São Mateus, onde a pluma da lama foi encontrada no mar, impedindo a pesca. A proibição relacionada ao camarão, por exemplo, continua até hoje.

Pesquisas revelam que os resíduos lançados no oceano chegaram ao Parque Nacional Marinho de Abrolhos, na Bahia, santuário ecológico e principal berçário das baleias-jubarte no Atlântico Sul. Na costa capixaba, ainda há a presença persistente de metais pesados (incluindo cádmio, ferro, níquel, chumbo e arsênio) nos sedimentos, na água e na biota (seres vivos de um ambiente). 

Já no Rio Doce, a qualidade da água, embora tenha mostrado melhorias ao longo do tempo, ainda não retornou aos níveis pré-rompimento. O material depositado no leito e no fundo do curso d'água e do mar é novamente suspenso durante períodos de chuvas intensas ou frentes frias.

Ponto Zero

Às 15h30 de 5 de novembro de 2015, acontece o rompimento da Barragem de Fundão, na cidade de Mariana, em Minas Gerais. A onda de lama de mais de 55 milhões de metros cúbicos, após passar por cima da barragem de Santarém, desestabilizando-a, inicia a sua jornada para se tornar o maior desastre ambiental do Brasil.

Crédito: DigitalGlobe e Globalgeo Geotecnologias

Avalanche mortal

As primeiras vítimas foram os trabalhadores da Samarco e terceirizados que atuavam nas proximidades do complexo. A avalanche de resíduos e água, em alta velocidade e com grande força, atinge os córregos de Fundão e Santarém, quebra suas calhas e muda os cursos naturais desses recursos hídricos.

Distrito soterrado

Entre 10 e 15 minutos depois do rompimento, a forte correnteza soterra boa parte de Bento Rodrigues, subdistrito de Santa Rita Durão. No local, o mar de rejeitos alcança a altura de até 15 metros em relação ao nível do rio. O desastre mata moradores e destrói casas, propriedades rurais e elementos do patrimônio cultural e histórico da comunidade.

Comparação de satélite do Rio Gualaxo do Norte antes e depois da lama
Crédito: DigitalGlobe e Globalgeo Geotecnologias
Subdistrito de Bento Rodrigues foi destruído pelo tsunami de lama
Crédito: Márcio Fernandes / Estadão Conteúdo / Arquivo AG

Sem parar

O tsunami de rejeitos de minério de ferro e sílica chega à calha do Rio Gualaxo do Norte até desaguar no Rio do Carmo rumo às comunidades de Paracatu de Baixo, Camargos, Águas Claras, Pedras, Ponte do Gama, Gesteira, em Mariana, e aos municípios mineiros de Barra Longa, Rio Doce e Santa Cruz do Escalvado.

Rio Doce coberto de lama na cidade de Governador Valadares
Crédito: Leonardo Merçon / Instituto Últi

Distâncias encurtadas

Após navegar 480 quilômetros, a lama entra oficialmente em território capixaba, no 11º dia da tragédia, em 16 de novembro de 2015. O rompimento da barragem, que antes parecia algo distante, se torna drama real para ribeirinhos e moradores urbanos no Espírito Santo. A captação de água é interrompida, causando comoção e medo na população local.

Crédito: Carlos Alberto Silva

O último obstáculo

Já tendo passado pela cidade de Baixo Guandu, a pluma chega à UHE Mascarenhas. A usina serve como o último grande ponto de passagem e monitoramento antes de Marilândia e Colatina. Mas o obstáculo de concreto não é capaz de impedir o fluido de continuar sua trajetória.

Lama da Samarco chegando na Usina Hidrelétrica Mascarenhas
Crédito: Governo do ES

Cartão-postal desfeito

O mar de rejeitos chega a Colatina entre 17 e 18 de novembro. O sistema de abastecimento de água é interrompido, afetando mais de 120 mil pessoas. Há uma corrida para comprar água mineral e para ter acesso aos carros-pipa. A cidade colatinense viu o Rio Doce, seu cartão-postal, ser tomado pela cor amarronzada.

Rio Doce tomado pela lama de rejeitos na altura de Colatina, ES
Crédito: Vitor Jubini

Afluente sente

Nos mesmos dias, a onda de rejeitos acaba também atingindo a cidade vizinha de Marilândia. Apesar de o Rio Doce não cortar o município, o seu afluente, Rio Liberdade, não fica imune. Os distritos ribeirinhos são os que mais sofrem com a tragédia.

Perfume do horror

Ao longo de sua peregrinação, a onda perde força e velocidade, mas carrega forte odor de ferro e de outros minerais, além do cheiro da matéria orgânica produzida pelo acúmulo das carcaças dos animais ao longo do trajeto.

Lama de rejeitos de minério de ferro no Rio Doce em Baixo Guandu
Crédito: Guilherme Ferrari / Arquivo AG

A véspera do fim

Quando atinge Linhares, no 16º dia (21 de novembro), a mancha de lama não era mais um tsunami. O rio, que ali já estava turvo, começa a dar os primeiros sinais da chegada com a mudança de textura, até que a cor marrom-avermelhada passa a dominar. A cena comove moradores que transformam a ponte principal da cidade num camarote, para ver de perto o que parecia impossível de acontecer.

Crédito: Secundo Rezende / Arquivo AG

Mar vermelho

O estuário, área de alimentação de tartarugas, é aos poucos coberto pelos rejeitos, no 17º dia da tragédia, 22 de novembro. A foz do rio, que deveria ceder água doce ao mar, entrega lama, levando a mancha marrom-avermelhada até a arrebentação. A invasão ao azul do Atlântico não é a última parada, pois os elementos ainda se dissipam até outros pontos do litoral.

Crédito: Fernando Madeira / Arquivo AG

Nesses dez anos, a situação ao longo do Rio Doce ainda é caracterizada por um profundo drama socioeconômico e ambiental, mesmo com os novos acordos de reparação assinados em 2024. Estudos coordenados pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), baseados em dados do DataSUS, revelam uma piora significativa no quadro de saúde das populações atingidas.

O levantamento da FGV mostra que o risco de câncer registrado no período pós-rompimento (2016-2022) foi 4,4 vezes maior nas áreas atingidas em comparação aos não afetados, com relatos de um aumento de 50% nos casos em Baixo Guandu. 

Além disso, a exposição à poeira do solo contaminado agravou problemas respiratórios, levando a um aumento de 394% nos registros hospitalares por pneumoconiose entre 2015 e 2020. 

No campo psicossocial, o estresse decorrente do desastre é evidenciado pelo crescimento de 39,67% nos diagnósticos por intoxicação aguda por uso de álcool. Houve também aumentos em casos de depressão, insônia e agravamento de doenças crônicas, como já apontavam inquéritos prévios do Ministério da Saúde.

Longe da Bacia do Rio Doce, Anchieta, sede do parque industrial de pelotização da Samarco, também sofreu. Sem minério, as usinas tiveram que ser paralisadas, só retomando às atividades, de forma parcial, em 2020.

DEPOIMENTOS

Busca por Justiça

O desastre levou à abertura de diversos processos judiciais, tanto no Brasil quanto no exterior, para julgamento dos responsáveis pela tragédia e para reparação dos danos. No âmbito criminal, a Justiça Federal brasileira absolveu as empresas Samarco, Vale, VogBR e BHP Billiton, além de 7 pessoas, entre diretores, gerentes e técnicos. Para o Tribunal Regional Federal da 6ª Região, não houve provas suficientes para punição individual. 

A denúncia feita pelo Ministério Público de Minas Gerais em 2016 pedia a condenação de 22 pessoas, além das quatro empresas. No entanto, os crimes de homicídio foram retirados do processo em 2019, depois de a Justiça Federal entender que as mortes foram causadas pela inundação. Até a data da sentença, diversos crimes ambientais prescreveram.

Ainda no Brasil, o Novo Acordo de Mariana foi homologado em 2024 pelo Supremo Tribunal Federal (STF). O pacto, assinado pela União, governos de Minas e do Espírito Santo, Ministérios Públicos, Defensorias Públicas e as mineradoras, prevê o pagamento de R$ 170 bilhões em 20 anos. Os recursos serão destinados à recuperação ambiental e social das áreas afetadas, sendo R$ 100 bilhões em dinheiro para a União, Minas Gerais e Espírito Santo, e R$ 70 bilhões em outras obrigações de reparação.

Também há dois processos pendentes em cortes estrangeiras, na Inglaterra e na Holanda. O escritório Pogust Goodhead pede na Justiça inglesa indenização de R$ 230 bilhões para cerca de 620 mil atingidos, incluindo indígenas, quilombolas, municípios, instituições religiosas e autarquias. Uma decisão sobre o caso está prevista para este ano. 

Já na Holanda, a fundação Stichting Ações do Rio Doce tenta obter compensações de pouco mais de R$ 19 bilhões para um grupo de 75 mil atingidos, entre indivíduos e municípios, que não participou dos acordos brasileiros ou não conseguiu se cadastrar na ação inglesa.

O que diz a Samarco

A Samarco reforça que vem cumprindo integralmente os termos do Novo Acordo do Rio Doce, que estabelece medidas para a conclusão definitiva da reparação, que estão sendo implementadas pela empresa e pelo poder público, com recursos totais de R$ 170 bilhões.

Parte desse recurso (R$ 11 bilhões) será destinado para obras de saneamento nos municípios aderentes, e tem como objetivo melhorar a qualidade da água. Até setembro de 2025, já foram pagos mais de 13,5 bilhões de reais em indenizações e auxílios financeiros, beneficiando 277 mil pessoas.

O acordo prevê, ainda, o repasse de R$ 12 bilhões aos municípios atingidos para a reparação de eventuais danos e impactos negativos à saúde coletiva da população dos municípios afetados. 

O dinheiro será utilizado para o fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS), financiando ações de vigilância, promoção, proteção, recuperação e atenção à saúde.

A empresa afirma que o monitoramento hídrico da Bacia do Rio Doce demonstra que a qualidade da água apresenta parâmetros similares àqueles anteriores ao rompimento da barragem de Fundão. Os dados podem ser acessados no Portal Monitoramento Rio Doce: monitoramentoriodoce.org.

A mineradora ainda destaca que faz ações de reflorestamento na Bacia do Rio Doce, onde mais de 42 mil hectares já foram cercados e protegidos, sendo que aproximadamente 31 mil hectares estão em processo de plantio ou enriquecimento com espécies nativas. Também foram cercadas e protegidas cerca de 3,9 mil nascentes. 

Com relação aos rejeitos, aponta que diferentes tecnologias foram empregadas, de acordo com cada trecho e o impacto sofrido, tais como a reconformação e delineamento de margens, controle de processos erosivos, instalação de troncos para diversificação do ambiente aquático, enrocamento, restauração florestal e viabilização da retomada de atividades produtivas dos solos de áreas impactadas, além da elaboração de Estudos de Viabilidade para remoção de rejeitos na UHE Risoleta Neves.

A Samarco confirma a conclusão da análise dos requerimentos apresentados no Novel, sistema indenizatório destinado às pessoas que exerciam atividade informal, com dificuldade de comprovação dos seus danos. Além disso, esclarece que os artesãos que tiveram seu requerimento finalizado sem acordo podem ingressar no PID, observadas as regras do programa. Saiba mais em samarco.com/indenizacao.

RIO DE LAMA E LUTA

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Equipe responsável pelo projeto

TEXTO E PESQUISA: MIKAELLA CAMPOS E GISELE ARANTES

ENTREVISTAS E APURAÇÕES: JOÃO BARBOSA, LETICIA ORLANDI E VINÍCIUS ZAGOTO

EDIÇÃO E COORDENAÇÃO DO PROJETO: GISELE ARANTES E MIKAELLA CAMPOS

EDIÇÃO E REVISÃO DOS TEXTOS: WEBER CALDAS

FOTOGRAFIA E VÍDEOS: FERNANDO MADEIRA

EDIÇÃO DE VÍDEO: FARLEY SIL

ARTE: CAMILLY NAPOLEÃO

SUPERVISÃO DE VÍDEO E ARTE: ADRIANA LIMA E HAELLY DRAGNEV

DESENVOLVIMENTO: MIKAELLA CAMPOS

SUPERVISÃO EDITORIAL: JOYCE MERIGUETTI

EDITOR-CHEFE: GERALDO NASCIMENTO

PRINCIPAIS FONTES CONSULTADAS

Ministério Público Federal, Projeto Rio Doce (Fundação Getúlio Vargas), governo federal, Universidade Federal de Minas Gerais, ScienceDirect, Acervo de A Gazeta e g1 ES