Publicado em 16 de outubro de 2025 às 17:33
Aviso: Este artigo contém detalhes que podem ser sensíveis para alguns leitores.>
Touma não come há dias. Ela permanece sentada em silêncio, com os olhos vidrados, enquanto olha fixamente para a enfermaria do hospital.>
Em seus braços, imóvel e gravemente desnutrida, está sua filha de três anos, Masajed.>
Touma parece insensível ao choro das outras crianças ao seu redor. "Eu queria que ela chorasse", diz a mãe de 25 anos, olhando para a filha. "Ela não chora há dias.">
>
O Hospital Bashaer é um dos últimos hospitais em funcionamento na capital do Sudão, Cartum, devastada pela guerra civil que dura desde abril de 2023. Muitos viajaram horas para chegar aqui e receber atendimento especializado.>
A enfermaria de desnutrição está lotada de crianças fracas demais para lutar contra a doença, com suas mães ao lado de seus leitos, indefesas.>
O choro aqui não pode ser acalmado e cada um deles é profundo.>
Touma e sua família foram forçados a fugir após os combates entre o exército sudanês e as Forças de Apoio Rápido (RSF, nas siglas em inglês) paramilitares chegarem à sua casa, a cerca de 200 km a sudoeste de Cartum.>
"[As RSF] tiraram tudo o que tínhamos — nosso dinheiro e nosso gado — das nossas mãos", diz ela. "Fugimos apenas com nossas vidas.">
Sem dinheiro ou comida, os filhos de Touma começaram a sofrer.>
Ela parece atordoada ao relatar a vida anterior deles. "Antigamente, nossa casa era cheia de coisas boas. Tínhamos gado, leite e tâmaras. Mas agora não temos nada.">
>
O Sudão vive atualmente uma das piores emergências humanitárias do mundo.>
Segundo a ONU, três milhões de crianças menores de cinco anos sofrem de desnutrição aguda. Os hospitais que restam estão sobrecarregados.>
O Hospital Bashaer oferece atendimento e tratamento básico gratuitos.>
No entanto, os medicamentos essenciais para as crianças na ala de desnutrição devem ser pagos por suas famílias.>
Masajed é gêmea; ela e sua irmã Manahil foram levadas juntas ao hospital. Mas a família só tinha condições de pagar antibióticos para uma criança.>
Touma teve que fazer a escolha impossível: escolheu Manahil.>
"Gostaria que ambas pudessem se recuperar e crescer", sua voz embargada pela dor falha, "e que eu pudesse vê-las caminhando e brincando juntas como faziam antes".>
"Só quero que as duas melhorem", diz Touma, embalando sua filha moribunda.>
"Estou sozinha. Não tenho nada. Eu só tenho Deus.">
As taxas de sobrevivência aqui são baixas. Para as famílias desta ala, a guerra levou tudo. Elas ficaram sem nada e sem meios para comprar os remédios que salvariam seus filhos.>
Ao sairmos, o médico diz que nenhuma das crianças desta ala sobreviverá.>
Em toda Cartum, a vida das crianças foi reescrita pela guerra civil.>
O que começou como uma erupção de combates entre forças leais a dois generais – o chefe do exército, general Abdel Fattah al-Burhan, e o líder da RSF, Mohamed Hamdan Dagalo, conhecido como Hemedti – logo tomou conta da cidade.>
Por dois anos – até março passado, quando o exército retomou o controle – a cidade foi tomada pela guerra, com combatentes rivais se enfrentando.>
Cartum, outrora um centro de cultura e comércio às margens do Rio Nilo, se tornou um campo de batalha. Tanques invadiram os bairros. Caças rugiam sobre suas cabeças. Civis ficaram presos entre fogo cruzado, bombardeios de artilharia e ataques de drones.>
É nessa paisagem devastada, em meio ao silêncio da destruição, que a voz frágil de uma criança se ergue dos escombros.>
Zaher, de 12 anos, caminha em meio aos destroços, passando por carros incendiados, tanques, casas destruídas e balas esquecidas.>
"Estou voltando para casa", ele canta baixinho para si mesmo enquanto sua cadeira de rodas rola sobre cacos de vidro e estilhaços. "Não consigo mais ver minha casa. Onde fica minha casa?">
Sua voz, frágil, mas determinada, contém tanto um lamento pelo que foi perdido, quanto uma esperança silenciosa de que um dia ele possa finalmente voltar para casa.>
Em um prédio que agora está sendo usado como abrigo, a mãe de Zaher, Habibah, me conta como era a vida sob o controle das RSF.>
"A situação era muito difícil", diz ela. "Não conseguíamos acender as luzes à noite — era como se fôssemos ladrões. Não acendíamos fogueiras. Não nos mexíamos à noite.">
Ela está sentada ao lado do filho em um quarto com várias camas de solteiro.>
"A qualquer momento, seja dormindo ou tomando banho, em pé ou sentado, você os encontra [as RSF] respirando no seu pescoço.">
Muitos fugiram da capital, mas Zaher e sua mãe não tinham como sair. Para sobreviver, vendiam lentilhas nas ruas.>
Então, certa manhã, enquanto trabalhavam lado a lado, um drone caiu sobre eles.>
"Olhei para ele e ele estava sangrando. Havia sangue por toda parte", diz Habibah. "Eu estava perdendo a consciência. Me forcei a ficar acordada porque sabia que, se desmaiasse, o perderia para sempre.">
As pernas de Zaher estavam gravemente danificadas. Após horas de agonia, eles conseguiram chegar ao hospital.>
"Eu continuei rezando: 'Por favor, Deus, tire a minha vida em vez das pernas dele'", ela chora.>
Mas os médicos não conseguiram salvar as pernas dele. Ambas tiveram que ser amputadas logo abaixo do joelho.>
"Ele acordava e perguntava: 'Por que você deixou que cortassem minhas pernas?'" Ela olha para baixo, com o rosto cheio de remorso. "Eu não conseguia responder.">
Tanto Habiba quanto o filho choram, atormentados pela lembrança do que aconteceu com eles. A situação piora ao saber que próteses poderiam dar a Zaher uma chance de viver sua antiga infância, mas Habiba não tem condições financeiras para isso.>
Para Zaher, a lembrança do que aconteceu é muito difícil de ser contada.>
Ele compartilha apenas um sonho simples. "Gostaria de ter pernas protéticas para poder jogar futebol com meus amigos como antes. Só isso.">
As crianças em Cartum foram roubadas não somente de suas infâncias, mas também de lugares seguros para brincar e ser jovens.>
Escolas, campos de futebol e parquinhos estão agora destruídos, com lembranças fragmentadas de uma vida roubada pelo conflito.>
"Era muito bom aqui", diz Ahmed, de 16 anos, olhando ao redor de um parque de diversões destruído.>
Estampado em sua camiseta cinza e esfarrapada está um enorme rosto sorridente — a palavra "sorriso" estampada abaixo. Mas sua realidade não poderia estar mais distante desse sentimento.>
"Meus irmãos e eu costumávamos vir aqui. Brincávamos o dia todo e ríamos muito. Mas quando voltei depois da guerra, não conseguia acreditar que era o mesmo lugar.">
Ahmed agora mora e trabalha aqui, limpando os escombros deixados pela guerra, ganhando 50 dólares (R$ 271) por 30 dias de trabalho contínuo.>
O dinheiro ajuda a sustentar a ele, sua mãe, sua avó e um de seus irmãos.>
Havia outros seis irmãos, mas, como tantos outros no Sudão que têm familiares desaparecidos, ele perdeu o contato com eles. Ele olha para os próprios pés enquanto nos conta que não sabe onde eles estão ou se algum ainda está vivo.>
A guerra destruiu famílias como a dele.>
O trabalho de Ahmed lembra a ele sobre isso quase diariamente. "Encontrei os restos mortais de 15 corpos até agora", diz.>
Muitos dos restos mortais encontrados aqui já foram enterrados, mas ainda há alguns ossos espalhados.>
Ahmed atravessa o parque e pega um maxilar humano. "É assustador. Me faz tremer.">
Ele nos mostra outro osso e, segurando inocentemente ao lado da perna, diz: "Este é um osso da perna, como o meu.">
Ahmed diz que não ousa mais sonhar com o futuro.>
"Desde o início da guerra, tenho certeza de que estou destinado a morrer. Então, parei de pensar no que faria no futuro.">
A destruição de escolas colocou o futuro das crianças em risco ainda maior.>
Milhões de pessoas não estão mais recebendo educação.>
Mas Zaher é um dos poucos sortudos. Ele e seus amigos frequentam a escola em uma sala de aula improvisada, montada por voluntários em uma casa abandonada.>
Eles gritam respostas em voz alta, escrevem no quadro, cantam músicas e há até algumas crianças travessas brincando no fundo da sala.>
Ouvir o som de crianças aprendendo e rindo, em um país onde os lugares para ser criança são tão limitados, é como néctar.>
Quando perguntamos como deveria ser a infância, os colegas de Zaher respondem com a inocência ainda intacta: "Devíamos estar brincando, estudando, lendo.">
Mas a lembrança da guerra nunca está longe. "Não deveríamos ter medo das bombas e das balas", interrompe Zaher. "Deveríamos ser corajosos.">
A professora deles, Amal, leciona há 45 anos. Ela nunca viu crianças tão traumatizadas.>
"Elas foram muito afetadas pela guerra", diz ela.>
"A saúde mental deles, o vocabulário deles. Eles falam a língua das milícias. Palavrões violentos, até violência física. Eles carregam paus e chicotes, querendo bater em alguém. Eles ficaram muito ansiosos.">
O dano vai além do comportamento.>
Com a maioria das famílias sem renda, a escassez de alimentos é devastadora.>
"Alguns alunos vêm de lares sem pão, sem farinha, sem leite, sem óleo, sem nada", diz a professora.>
E, no entanto, em meio ao desespero, as crianças do Sudão se agarram a momentos fugazes de alegria.>
Em um campo de futebol marcado, Zaher se arrasta de joelhos pela terra, determinado a jogar o esporte que mais ama. Seus amigos o incentivam enquanto ele chuta a bola.>
"Minha atividade favorita é o futebol", diz ele, sorrindo pela primeira vez.>
Quando perguntado para qual time ele torce, a resposta é imediata: "Real Madrid". Seu jogador favorito? "Vinícius".>
Jogar de joelhos é extremamente doloroso e pode levar a mais infecções. Mas ele não se importa.>
O futebol e suas amizades o salvaram. Trouxeram alegria e uma fuga da realidade para ele. Mesmo assim, ele sonha com pernas protéticas.>
"Gostaria que me consertassem, para que eu pudesse ir a pé para casa e para a escola", diz Zaher.>
Com reportagem de Abdelrahman Abutaleb, Abdalrahman Altayeb e Liam Weir>
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta