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'Há médicos que se esquecem do Código de Ética'

"Há médicos que se esquecem do Código de Ética"

Subprocurador-geral da República afirma que "patrocínio" a médicos é uma realidade em todo o país

Publicado em 9 de janeiro de 2018 às 01:46

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Subprocurador-geral da República, Antônio Fonseca é também presidente do Conselho de Ética do Instituto Ética Saúde, entidade criada em 2015 com o objetivo de desenvolver um ambiente de negócios justo entre médicos, hospitais, laboratórios e fornecedores de próteses e de medicamentos. Nascida a partir do Instituto Ethos, a entidade tenta combater esquemas de remuneração de médicos e hospitais que direcionam determinados produtos ou procedimentos porque são remunerados para isso.

O que representa a existência de um instituto como esse?

O instituto é a entidade que administra uma espécie de sistema de compliance setorial. A gente pode dizer que, se uma entidade dessa é necessária, podemos partir do pressuposto de que as empresas, nos diversos segmentos, não têm dado conta de desenvolver um sistema de ética para resolver problemas de desvios, ilegalidades e crimes praticados na comercialização de dispositivos médicos, implantáveis ou não.

Qual o panorama nacional hoje?

Há dois anos, o Fantástico, da TV Globo, divulgou um grande esquema da máfia das próteses. A partir daquele cenário, estamos melhorando? Eu diria que sim. Mas ainda precisamos melhorar muito. O grande problema é que o sistema de compliance e integridade funciona no âmbito da regulação e é insuficiente porque depende da ajuda das instituições. Existe presença forte do Estado em vários setores. Em Saúde não é diferente. O Estado, de algum modo, contribui para os desvios. Os hospitais que atuam no SUS fogem da atuação do nosso instituto. Os desvios que encontramos na área privada são parecidos com os da área pública. É um problema generalizado no Brasil.

Como acontecem esses crimes?

No público, segundo informações que nos chegam, atendem uma pessoa que precisa de dois pinos. Internamente, o médico resolve que aquela pessoa precisa de cinco pinos. O médico coloca os dois e guarda os três. Ele vai usar os outros onde? Ele vai em outro ambiente, onde tem mais liberdade, e vende. Às vezes, para um paciente que não tem plano. Estou falando hipoteticamente. Pode não ser com pinos, pode ser com outro produto. Às vezes, a unidade hospitalar não tem bom controle. E o sujeito faz acerto com o cara que controla o almoxarifado, por exemplo.

E no privado?

Vou dar novamente o exemplo dos pinos para não sofisticar tanto. Às vezes, o médico chega à conclusão de que aquele paciente, na faixa dos 70, precisava de uns pinos. Pela idade, o benefício seria pouco ou nenhum. O paciente tem plano de saúde, que vai pagar. Além disso, muitas vezes, o médico coloca um número de produto que o paciente não precisa. Diz que vai colocar cinco e só coloca dois. Quando ele faz isso, o plano de saúde vai pagar os cinco. Claro que isso acontece com a conivência do hospital. Outra situação: você é um fabricante, um distribuidor ou importador. O médico diz 'vou usar seu produto, mas preciso de uma comissão.'

Isso é crime?

Não tenha dúvida. E isso encarece os planos. Se os gastos são altos, o valor que se paga para o plano tende a ser maior. Sendo maior, isso onera o usuário e ele sai do plano. Nos últimos 24 meses, é grande o número de pessoas que deixaram os planos. Por razões diversas ou porque não podem pagar porque ficou caro.

E não é um crime que acontece só com próteses?

Existe também outra situação. A do médico que pede um número grande de exames laboratoriais, muitas vezes desnecessários, coisa que o próprio usuário nem vai buscar. E faz com interesse em comissão. Sou o médico e você é dono de grande laboratório. Eu sempre mando para o seu laboratório e você me dá uma comissão. E isso onera o plano.

O que também é imoral.

Se você ler o Código de Ética Médica, ele é ótimo. Não admite nada disso. O que importa é o interesse do paciente. Mas, para gerar receita, alguns médicos fazem qualquer coisa e esquecem do Código. Médicos envolvidos nisso têm uma remuneração mensal superior a R$ 80 mil, a R$ 100 mil.

É uma realidade do Brasil e do Espírito Santo?

É, sim. O cara ganha uma comissãozinha e não dá importância, mas no agregado é grave. Para o paciente e para o plano. No entanto, quando chega para a autoridade, chega um caso pequeno. E as autoridades têm os seus problemas de investigação. A polícia tem suas prioridades, o Ministério Público tem suas prioridades. Até que alguém descobre o fio da meada para transformar aquilo em grande operação. O médico sabe que a possibilidade de ser pego é muito relativa.

E como essas fraudes passam pela judicialização?

Vamos de novo ao exemplo dos pinos. Você precisa de cinco. O plano diz que não vai pagar os cinco. O paciente já vai ao advogado com o laudo do médico falando dos cinco pinos. E o advogado vai à Justiça dizer que os cinco pinos são devidos porque o médico falou que, dentro de tantas horas, a pessoa sofreria isso ou aquilo. É dessa forma que ocorre.

E fica muito difícil para o juiz saber que há má intenção ali.

Se o juiz veio da área da família e foi julgar casos de saúde, não é que ele não entenda nada. Ele entende dos princípios, da lei. O problema é a prova, saber que o cara estava mal intencionado. Houve casos relatados de o médico chegar para o paciente e dizer que ele precisa de uma cirurgia assim ou assado. Você tem plano? Não. Eu pago um plano pra você. Mas o plano tem a carência. Então, vou pagar um plano pra você. Quando vencer a carência, você entra com um pedido de cirurgia. Mas aí vou colocar tantos materiais para cobrir o investimento que eu fiz. Aí o paciente diz: doutor, não dá pra você dobrar esse custo pra gente rachar depois? Isso já existiu. A corrupção existe porque tem apoio de mais de um lado.

Há casos conhecidos no Espírito Santo?

Como sou do Conselho de Ética, não posso falar de casos concretos. O que posso dizer é que recentemente um conjunto de informações foi passado para a Associação Nacional do Ministério Público de Defesa da Saúde (Ampasa), que tem convênio com o instituto. Investigações estão em curso e a gente pode dizer que essas pessoas que continuam fazendo mal feitos podem esperar porque a hora delas vai chegar. Claro que a gente fica sempre em contato com as autoridades, tentando justificar que algumas situações merecem operações.

Entre as informações passadas à Ampasa, há informações relacionadas ao Espírito Santo?

Há uma grande possibilidade. Tem uma possibilidade, sim. Isso acontece no Brasil todo.

Qual a maior maior contribuição que o instituto poderá dar para acabar com esses esquemas?

Está na contribuição do sistema de compliance, na conscientização de que isso precisa acabar. Falar do impacto do mal feito, dizer que é possível ser honesto, fazer o certo e sobreviver lucrando com um serviço honesto. Estamos formando um cinturão institucional que fortalece as ações anticorrupção na área da saúde.

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