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Decisões judiciais furam a fila do SUS, diz secretário

Decisões judiciais furam a fila do SUS, diz secretário

Ricardo de Oliveira sugere que má-fé de empresas e profissionais está por trás de muitos casos de judicialização

Publicado em 4 de janeiro de 2018 às 01:41

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Vinícius Valfré | [email protected]

Samanta Nogueira | [email protected]

O secretário estadual de Saúde, Ricardo de Oliveira, avalia que a judicialização é um "massacre administrativo". Ele revela que precisa manter 30 servidores em um setor de mandados judiciais, mão de obra que deveria estar direcionada ao atendimento de usuários do SUS. Oliveira rechaça a tese de que a judicialização cresce exclusivamente por causa de subfinanciamento da saúde e aponta crescimento nas ofertas de medicamentos, leitos, consultas e exames pelo Estado. Também reclama de "sensacionalismo" em denúncias de problemas na rede pública. "O SUS é a falta, mas é o fornecimento também."

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O juiz deu uma decisão e salvou um. Matou quantos? A questão é essa

Ricardo de Oliveira
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Série 'Justiça como remédio':

Como vê o problema da judicialização no Estado?

Quando você olha do ponto da secretaria, é um massacre administrativo. Para o juiz, é uma coisa única, mas convergem todos os juízes para cá, seja federal ou estadual. Aí isso se transforma em problema de grande monta administrativa. Não se pega uma demanda dessa e responde automaticamente, como dois mais dois são quatro. Tem que consultar uma área específica, tem um processo para compra, tem procedimentos. É uma energia que deveria estar direcionada para atender usuários do SUS. Muitas vezes acontece de o próprio juiz achar que não respondi. É porque não dá. É impossível.

Por que ficou desse tamanho, na visão do senhor?

A resposta simples é a de que o Estado não tem estrutura e o povo procura seu direito na Justiça. Isso deve explicar parte. E minha hipótese é a de que isso explica parte muito pequena da judicialização. De 2011 a 2016, aumentamos o serviço. Não pode haver a avaliação simplista que está na boca de todo mundo. Uma prefeitura da Grande Vitória pegou um grupo de pessoas que tinha judicializado e viu que 90% não tinha nem ido ao SUS. Criou-se outra porta de entrada. É uma porta de entrada que não tem critério técnico, porque o critério é uma decisão judicial.

Mas as pessoas chegam com avaliação de um médico profissional, muitas vezes da rede pública mesmo.

Muitas vezes. E tem uns que nem têm. A tese que tenho discutido com juízes é a de que há coisas não judicializáveis. O juiz manda internar uma pessoa e suponha que tenha lá um parecer médico. Como funciona o SUS? Chegam várias demandas e temos uma priorização em função da chegada e do risco. Só o médico regulador consegue avaliar quem tem que ir na frente de quem. Um médico isolado que mandou parecer para juiz não tem a avaliação do todo. O juiz não pode decidir. Decisão judicial fura fila. A equidade do SUS vai para o ralo. Estávamos em 2017 com mais de R$ 30 milhões só em medicamentos. Temos substitutos terapêuticos para tudo. O que está na lista do SUS não precisa judicializar.

Acompanhamos vários casos de pacientes que tomam remédios que estão nas listas do SUS e mesmo assim faltou. Se falta, o que esses pacientes tem que fazer a não ser judicializar?

Acho difícil que falte. Nossa disponibilidade na farmácia é de 98%. Eventualmente, você pode ter momentaneamente alguma falta. É raro, muito raro. Eventualmente, pode ter algum problema com fornecedor. Eu acompanho semanalmente tudo que acontece com medicamento. Alguns remédios são nossos e outros são do Ministério da Saúde. Atrasa lá e não mandam. Isso pode acontecer porque a burocracia da administração pública é muito grande e isso atrapalha a prestação de serviços.

Um paciente toma um medicamento uma vida inteira. Por alguma razão, seja por falha do fornecedor, o medicamento faltou uma semana ou um dia. O que dizer para ele?

Você está falando de um caso. Eu estou falando de 10 mil. Destes, quantos foram problemas desse tipo? Não estou discutindo que não tem que ter judicialização. No caso de internação, eu até discuto se esse tema é passível de judicialização porque o juiz não tem informação e prejudica a equidade do SUS. Ele tem informação de um, mesmo que o médico diga que ele precisa. 'Dei uma decisão e salvei um'. Matou quantos? A questão é essa.

Por que não é problema de investimento?

Especificamente no caso do Espírito Santo, temos uma determinação constitucional de aplicar 12% da receita corrente líquida. Colocamos 18%. Na última vez que vi, éramos o segundo do país. As pessoas dizem que o governo não investe. Isso não é verdade. Os municípios também ultrapassam seu limite constitucional. É muito fácil dizer que judicializa porque não tem. Temos que aprofundar esse debate. Se não, vamos jogar dinheiro público fora.

Se o problema não é falta de estrutura e investimento, é o quê?

Começou-se a criar uma alternativa para isso, uma porta de entrada. Começou a ter uma indústria de corrupção. Há pouco tempo a Polícia Federal pegou laboratório, médico e até associação de pacientes.

Há casos de corrupção envolvendo judicialização no país. Mas isso acontece no Estado?

Deve ter, eu não consigo... Nunca apuramos, nunca fizemos uma investigação policial sobre isso. Mas porque acontece em São Paulo, Minas Gerais e não acontece aqui? Estaríamos aqui protegidos de maus elementos do mercado? Acho que não. Não posso dizer para você o que provocou esse crescimento exagerado. O que eu estou dizendo é que eu fui atrás para entender o que poderia explicar. A população adoeceu num fator de 25 vezes mais? Não foi. A única coisa que estou questionando é que falta de estrutura não é. Não é a falta da oferta de serviço. O Judiciário tem o seu papel, que é o de pegar os problemas de funcionamento. Eu não estou dizendo que não existem. Só estou dizendo que a sociedade precisa conversar e debater melhor o que está acontecendo e não embarcar direto na discussão de que isso é um problema de falta de estrutura.

Pelo que o senhor fala, se a polícia procurar, vai achar algo no ES.

Pode acontecer mesmo. Não sei como a PF iniciou esse processo, mas imagino que quando iniciam um processo desse, como o de Minas Gerais e São Paulo, investigando órteses e próteses, começa a gerar filhotes, como a Lava Jato. Mas não sei como a polícia age. Não tenho nenhuma dúvida que uma parte dessa história de judicialização está associada à corrupção. Mas é a maior parte? Não posso dizer isso.

O senhor concorda com aquela ideia de que a judicialização desloca orçamento de todos para um?

Claro, evidente. É isso. Não tem orçamento novo. Decisão judicial não cria orçamento aqui. Desloca recurso porque você tem um planejamento para fazer a política pública, no coletivo, e vem  decisões para eu tratar o individual. Vou tratar diferente porque o juiz mandou? É assim que está hoje. Isso se espalhou, as pessoas perceberam e todo mundo que ter esse privilégio.

O senhor disse que o médico que prescreve não tem ideia do todo. Mas ele prescreve o que avalia como necessário para aquele indivíduo e precisa fazer, não é?

Ele pode fazer o que ele quiser. Mas essa é uma informação. O médico e o juiz não têm informações para decidir quem é que vai primeiro. Ele diz que aquele precisa. E precisa. Mas quantos precisam?

O juiz diz que não pode deixar de atender e o médico diz que a transferência precisa ser feita. Ao juiz cabe o que, além de deferir o pedido?

Não sei. Ele deveria ter uma assessoria técnica. Eu já recebi aqui decisão para internar gente com morte cerebral. Isso não é judicializável. Essa decisão é do médico regulador do SUS. Quando mandam comprar leito na rede privada, não tem para vender.

Isso é normal de acontecer?

Normal. Quando não tenho na minha rede, consulto os filantrópicos e vamos para o privado. Temos que atender. Nossa compra de leitos é grande. Muita gente está saindo dos planos de saúde e vindo para o SUS. Isso cresceu assustadoramente. E isso quem paga somos nós. O Orçamento do Estado não está suportando a demanda em cima da saúde.

Hoje o Estado escolhe qual decisão vai cumprir e qual não vai?

Não. Chegou mandado, tem que cumprir, inclusive afetando a equidade e furando fila. Não existe essa história de não quer cumprir. Às vezes, demora. Claro, são 42 por dia útil. É um massacre. Dizem que está demorando, mas tem a Lei das Licitações. Se vou ali na esquina e compro um produto para ir mais rápido, o que acontece? Se não cumpriu, é porque teve dificuldade.

Medicamentos que estão nas listas os pacientes deveriam ter todos os dias. Se faltou um dia, ele não tem razão?

É pequena, pode ter certeza. Tudo pode acontecer, mas é pequeno. Tem remédio comprado pelo Estado e pelo Ministério da Saúde. Recentemente, teve denúncia de falta de remédio no Hospital Infantil. Aí você sai procurando por aí, pede emprestado a outro Estado. Você tem razão, não pode falhar,  algumas coisas são contínuas. Mas isso é na margem. Se faltou o seu, você vai ficar muito chateado com isso. Mas entregou 98. Como avalia isso do ponto de vista da saúde pública? É ruim? Não é. Mas se eu olhar para isso, vou jogar uma lama no sistema inteiro. E a mídia faz isso direto.

Mas não tem que faltar nada.

O SUS é a maior política social que esse país tem. Mas se você acompanhar pela mídia você vai achar que não vale nada. Está errado. Temos que ter equilíbrio, porque se não a população vai fazer avaliação equivocada do sistema que tem. Vai achar que o SUS é a falta. O SUS é a falta, mas é o fornecimento também. E a falta é muito menor que o fornecimento. Temos tendência, na mídia, de fazer denúncia de escândalo. Calma, porque não é bem assim. Tem denúncias e denúncias. 'Você não conseguiu o seu remédio, mas 99 conseguiram. Calma, não joga lama no SUS.

 

Os municípios, os Estados e a União precisaram gastar R$ 7 bilhões com a judicialização da saúde em 2017, segundo estimativa do Ministério da Saúde. Para efeito de comparação, esse valor seria suficiente para construir e equipar 23 hospitais do porte do Jayme dos Santos Neves, na Serra, país afora. A falta de infraestrutura e de investimentos na saúde pública é só uma das explicações para o fenômeno. 

"De fato temos um financiamento da saúde por habitante inferior ao de vários países do mundo. Ela é subfinanciada. Temos que reconhecer que faltam recursos para a saúde", afirmou o desembargador do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), João Pedro Gebran Neto, um dos principais debatedores da judicialização da saúde no Brasil.

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