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'O jogo político não fala em sair da crise', diz filósofo

"O jogo político não fala em sair da crise", diz filósofo

Filósofo ligado ao PSDB, e que não poupa críticas ao partido, diz que a esquerda está presa ao século XIX, e a democracia brasileira, no sanatório. "Ou você é coxinha ou é mortadela."

Publicado em 18 de março de 2018 às 00:16

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"Bolsonaro é reflexo da enorme importância que o crime organizado tem no dia a dia do país. Ele diz que é contra a violência, mas não diz como. E as pessoas não querem saber". (Werther Santana/Agência Estado)

Filósofo e professor emérito da Universidade de São Paulo (USP), José Arthur Gianotti não mantém convicções otimistas sobre o futuro do Brasil. Tampouco sobre o país que sairá das urnas nas eleições deste ano. Para ele, a crise na qual o país está inserido consegue ser pior que a de 1964. Apesar de hoje termos o poder do voto, o intelectual surpreende ao asseverar que a democracia se mostra ineficaz e que o direito ao livre exercício do sufrágio, por si só, permite apenas uma sensação de que os problemas nacionais podem ser resolvidos.

Na avaliação de Gianotti, o principal problema do Brasil está na falta de debate real sobre seus problemas. Na visão dele, apesar da urgência que o momento impõe, os partidos também não estão preocupados com isso.

Nesse contexto, critica duramente a esquerda brasileira por avaliar que ela falha na compreensão do capitalismo contemporâneo e fica presa a um modelo do século XIX. Enquanto o diagnóstico permanece errado, ele credita também à esquerda uma parcela da responsabilidade na escalada das desigualdades provocadas pelo capitalismo que ela tanto diz combater.

A partir da fundação do PSDB, no final dos anos 1980, Gianotti tornou-se uma referência para os tucanos. Era um intelectual altamente considerado no partido. Chegou a fazer parte do Conselho Nacional de Educação no governo de Fernando Henrique Cardoso, mas não se adaptou e ficou pouco tempo.

O professor tem estreita relação com FHC. A proximidade nunca fez com que deixasse de criticar duramente o partido do ex-presidente. Uma das últimas polêmicas declarações do filósofo foi a de que “o PSDB acabou”. Ele considerou que os caciques tucanos deixaram de fazer interlocuções construtivas entre eles. Confira a entrevista:

Apesar de períodos de recessão e desemprego em alta, há alguma estabilidade econômica e institucional no Brasil de hoje. Mesmo assim, o senhor considera a nossa crise como pior que a de 1964. Por quê?

Antigamente, tínhamos um processo em que militares tomavam conta do poder e colocavam alguma ordem na casa. Hoje, embora as instituições funcionem mais ou menos, temos uma intervenção federal que não é brincadeira e a cada dia que passa a democracia se mostra ineficaz na formulação das questões brasileiras. Não estou vendo discussão nenhuma a respeito do que pode vir a ser o Brasil futuro. Nem explicações sobre o que nos colocou nessa crise.

Não estaria havendo uma concentração de esforços para passar o passado a limpo e, depois, seguir em frente? E por isso a carência de discussão séria sobre o futuro?

Quem está passando o passado a limpo? Nenhum dos partidos. Temos uma espécie de tomada do futuro pelo passado. Tivemos uma crise enorme do populismo à medida que a esquerda deixou de compreender o capitalismo que combate. O primeiro dever da esquerda é entender como está funcionando esse capital moderno. Ser do PSOL é ser contra o capitalismo velho, é pensar a propriedade alheia como era no século XIX. Isso não é esquerda. É cada vez mais um simulacro mesmo. Não sou reacionário. Com o lulismo houve enorme distribuição de riqueza, mas a produção foi deixada de lado. Foi Dilma que “impichou” ela mesma. Lembremos que a primeira coisa que Lula pediu a ela foi que ela colocasse o Henrique Meirelles no Ministério da Fazenda para consertar as coisas. Ela colocou o Joaquim Levy. Uma semana depois o André Singer (um dos formuladores do PT) escreveu na folha que houve estelionato eleitoral.

O senhor faz muitas críticas à esquerda, à desconexão dela com a sociedade moderna. Por que esse foco? Em que a solução dos problemas do país passa pela esquerda?

Se quisermos ter um processo modernizante, que tire o Brasil dessa crise, o primeiro fator é precisar da esquerda. O segundo é ter uma enorme ênfase na inovação tecnológica. Estamos saindo da crise graças ao desempenho extraordinário da agroindústria. É graças à Embrapa e a outros órgãos que transformaram o campo brasileiro. É resultado de boas e novas técnicas. Isso tem que ser para todo o Brasil.

E como isso está relacionado com o sistema político?

O Brasil precisa de 260 anos para ter um Ensino Médio equivalente a países desenvolvidos. Embora o sistema político funcione regularmente, não funciona para o bem. Temos uma democracia que mantém sua estrutura, mas que não dá campo para a discussão dos problemas reais. Nesta crise de Estado, seria natural que jovens participantes desse Estado começassem a revolucionar o próprio Estado, como aconteceu com a Lava Jato. Aliás, a operação, em vez de fuzilar todo o sistema político, foi seletiva.

O senhor acha que a operação Lava Jato é mesmo seletiva?

Óbvio que foi seletiva. Mas como estratégia para dividir os ladrões políticos. Não creio que o PSDB esteja contente com a operação. Foi seletiva como estratégia para que políticos não se unissem. Nesse momento, todos os políticos se uniram. Mais ainda, juntaram um bilionário fundo eleitoral, o que significa que caciques d os partidos vão distribuir dinheiro para os que querem que sejam eleitos, para que mantenham o foro privilegiado.

Há movimentos para acabar com a possibilidade de prisão em segunda instância e manter o foro especial.

Se isso acontecer, em seis meses temos a Papuda, Benfica e todos esses presídios esvaziados. Bela democracia...

Mas hoje a democracia que temos nos dá o direito ao voto. É possível mudar o governo e demais representantes.

Não adianta nada. De que adianta? A questão é que os problemas não estão sendo discutidos. Qual partido representa alguma coisa? O PT não representa novidade, o PSDB também não. Não estou nada animado. Não me venha dizer que sou contra a democracia e favorável ao golpe militar. Não é nada disso. Até porque o único golpe que poderíamos ter hoje seria o do PCC.

A saída da crise, o reencontro com os trilhos depende dos partidos políticos. Dependemos deles e não podemos contar com eles. É isso?

Isso se chama ser enrabado (risos). O jogo político não fala em sair da crise. Eu quero saber como vamos sair da crise de maneira contínua. Teríamos que melhorar violentamente o nosso sistema educacional. Algo foi feito no nível da educação pelo governo Temer, mas nada com produtividade. O Estado tem que funcionar. Cada medida que se toma no Estado, metade dela é corrompida ou cai no vazio. É um país que anda na lama.

A última pesquisa do Ibope mostrou que 44% da população está pessimista com as eleições deste ano. Que consequências pode provocar no pleito?

Se continuar desse jeito, teremos um número monumental de abstenções. Eu mesmo uma vez não votei em São Paulo porque não ia escolher entre os candidatos a prefeito que estavam à disposição.

Grandes lideranças políticas têm buscado nomes mais ou menos fora do establishment político para apresentar como soluções. Falou-se em João Doria, Luciano Huck, Joaquim Barbosa... É uma boa alternativa para a crise de representação que enfrentamos?

Veja o que Fernando Henrique Cardoso fez. Ele tentou ampliar o jogo (colocando Luciano Huck como uma opção). Conseguiu? Não. Ele é muito lúcido, mas teve pouquíssima influência nesse processo. Não temos candidato viável. E agora o Nizan Guanaes disse que quem ganha a eleição é o Bolsonaro.

Mas essa não seria uma exceção. O que explica os ventos à direita que sopram no Brasil e no mundo? O último deles foi nas eleições da Colômbia.

A política mundial está indo para a direita, inclusive por incapacidade da esquerda de pensar o que é o capital contemporâneo.

E especificamente sobre o fenômeno Bolsonaro. O que está acontecendo?

A sociedade brasileira é extremamente violenta. Veja a quantidade de mortos por ano. A cada 2,5 dias um policial morto. A violência causa violência. E Bolsonaro é reflexo da enorme importância que o crime organizado tem no dia a dia do país. Ele diz que é contra a violência, mas não diz como. E as pessoas não querem saber.

O capitalismo de hoje, na visão do senhor, é gerador de desigualdades.

O capitalismo contemporâneo provocou uma desigualdade no mundo que é extraordinária. E o mais importante é que essa desigualdade é algo fluido, com capital fluido, desempregando violentamente, com Facebook que faz as pessoas acharem que têm voz. Daqui a pouco, o mundo adotará o Estado mínimo. A produção intelectual do mundo está uma m...

Somos ingênuos ao desejar uma política plenamente republicana, sem troca de favores, barganha e disputa de poder pelo poder?

Nesses termos sim, mas é possível termos um cenário um pouco melhor. Quando olha o cenário absoluto, não dá. Mas se tivermos um sistema em que as pessoas se respeitem já é alguma coisa. Hoje, ninguém está falando coisa com coisa. Ou você é coxinha ou é mortadela.

Na avaliação do senhor, a esquerda também peca nesse ponto?

O Guilherme Boulos (pré-candidato à Presidência da República pelo PSOL) quer acabar com as privatizações. Mas onde vai arrumar dinheiro? As pessoas vivem suas ideologias sem pensar como vão dar o primeiro passo. O Brasil está virando o mundo da piada pronta. Me desculpe, estou dando uma péssima entrevista (risos).

O país precisa de reformas profundas, mas o debate dos congressistas sempre gira em torno da autopreservação. Falta autocrítica?

É uma autopreservação sem dar um passo à frente. Se não dá passo à frente, não é político, é corredor de jóquei.

De todos os problemas, o que é mais urgente na visão do senhor?

A primeira coisa é evitar desastres, como uma mudança no Supremo Tribunal Federal no que diz respeito à prisão em segunda instância.

Eu também devia perguntar ao senhor se o senhor vê a nossa democracia como forte ou frágil. Mas, pelo que diz, deveria haver uma questão ainda anterior, que é se a democracia é efetiva ou não.

Ela é maluca. Nossa democracia ela é efetiva, mas está no sanatório.

E um bom exemplo do sanatório ...

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