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Juristas explicam como legislação atual pode favorecer a impunidade

Juristas explicam como legislação atual pode favorecer a impunidade

Para eles, indicadores da violência estão ligados à sensação de impunidade e à sobrecarga do sistema, que poderiam ser solucionadas com a revisão de leis

Publicado em 27 de outubro de 2020 às 13:20

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Polícia faz operação no Bairro da Penha, em Vitória, nesta terça-feira (27)
Policiais durante operação em busca de criminosos. (Vitor Jubini)

Não importa se é na periferia ou no bairro nobre, a sensação de insegurança faz parte da realidade da população capixaba. As estatísticas justificam o medo: o Espírito Santo é o terceiro Estado do país que registrou o maior aumento no número de mortes violentas no primeiro semestre de 2020, segundo levantamento do Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

Na lista das 642 mortes que ocorreram no período, há homicídios dolosos e latrocínios, como o que vitimou o pedreiro Josias dos Passos Lírio, de 53 anos, na última sexta-feira (23). Ele foi assassinado durante um assalto a uma distribuidora de bebidas no bairro Jardim Bela Vista, na Serra, pouco depois de se render. Um ano antes, Josias já havia perdido o filho para a violência.

Para juristas e especialistas em Segurança Pública ouvidos pela reportagem, os indicadores da violência no Estado estão relacionados à sensação de impunidade e à sobrecarga do sistema. Eles defendem que a reformulação da legislação vigente poderia reduzir a quantidade de crimes sem solução. Para isso, seria preciso revisar o Código Penal, em vigor no Brasil desde 1940, e também a Constituição Federal.  

O advogado e professor de Direito Penal, Raphael Pereira, aponta que os impasses para a condenação dos criminosos aparecem ainda na fase das investigações. "Boa parte dos crimes não é solucionada pela falta de provas. Se a polícia chega até um suspeito e quer indiciá-lo, surge uma série de recursos ao quais ele e o advogado podem recorrer, o que vai retardando a condenação. Atrasa o processo e muitos crimes acabam, portanto, engavetados", comenta.

A impunidade, explica Pereira, acaba reforçando o pensamento de que o crime compensa. "Esses indivíduos trabalham com a ideia de que a polícia não chegará até eles. Caso chegue, vai demorar muito para isso acontecer. Temos ainda um sistema judiciário atolado de processos, pois a quantidade de profissionais da área é pequena para tantos crimes. E, dentro da prisão, eles ainda poderão recorrer a inúmeros benefícios. Ou seja, os criminosos sempre colocam numa balança se vale a pena o risco, ainda mais se já conhecem o sistema", explica Pereira.

Entre os benefícios regulamentados no sistema carcerário, que permitem aos criminosos sair mais cedo da prisão, estão a progressão do regime de pena, que autoriza a saída dos condenados pelo bom comportamento; as "saidinhas", nas quais detentos podem deixar a prisão em datas comemorativas; e a remissão penal, que dá ao preso um dia de liberdade após três dias de trabalho cumpridos. 

Segundo o jurista, além da revisão do Código Penal, seria importante uma atualização da Constituição Federal, de 1988. Considerando que as características da sociedade mudaram de lá para cá, especialmente no que diz respeito à violência urbana, alguns artigos ficaram ultrapassados.

"Nos anos 1980, a Constituição era muito protetiva. Lógico que devemos utilizá-la atualmente para debater a Segurança Pública, mas, com o passar do tempo, a sociedade mudou, e a violência cresceu. A forma de agir dos criminosos foi ficando mais agressiva, só que a lei ainda é a mesma", compara Pereira. 

PROPOSTAS

Quem também propõe melhorias é o ex-desembargador e professor de Segurança Pública Henrique Herkenhoff. Apesar de criticar a superlotação dos presídios, ele propõe um endurecimento da pena para o porte ilegal de armas, que consta na Lei 10.826/2003, cuja punição atual é de 2 a 4 anos de reclusão.

"Precisamos desencorajar as pessoas a usarem armas. Hoje, algumas pessoas são apanhadas com uma metralhadora e saem com fiança. Na minha opinião, se alguém tem esse artefato, é para machucar alguém. Não existe essa conversa de defesa própria. Por isso, além de inafiançável, o porte deveria ter uma prisão mais severa", defende. 

A redução da maioridade penal é outro ponto defendido pelo especialista. Na visão dele, ainda não é a hora de punir menores de idades que tenham participação em qualquer tipo de ocorrência. No entanto, devem ser responsabilizados por crimes que envolvem atos violentos, como homicídio e roubo. O projeto de redução da maioridade penal tramita desde 1993 no Congresso Nacional. 

"Não defendo que haja a redução da maioridade para todos os crimes. Mas aqueles que envolvem roubo, homicídio e porte ilegal de armas devem ser tratados com uma severidade maior do que ocorre hoje. Isso para casos pontuais, ou seja, aqueles muito violentos ou que mexeram com a sociedade inteira", defende.

Em artigo publicado em A Gazeta, Herkenhoff também aponta uma incoerência na legislação brasileira. Enquanto a lei aprovada em outubro pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) eleva a sentença para quem maltrata cães e gatos, a punição para esse crime contra humanos permanece inalterada. "Ao aumentar pena por maus-tratos, talvez tenham esquecido de mudar também o Código Penal, cujo artigo 136 prevê somente 2 meses a 1 ano de detenção para quem fizer o mesmo com um ser humano", compara. 

SOBRECARGA

Além de penas mais rigorosas, outra mudança defendida é a revisão dos crimes que compõem o Código Penal.  O professor de Direito Penal Israel Jorio explica que algumas leis previstas no Código Penal deveriam ser analisadas em outras esferas, já que isso sobrecarga os sistemas penitenciário, judiciário e penal. 

"Quando há impunidade, significa que o sistema falhou. Se o Estado quiser ir atrás de todas as ocorrências, desde o menor até o maior crime, obviamente não vai conseguir. É preciso definir quais são as prioridades. De imediato, talvez o Estado tenha que fazer uma reforma para transferir uma grande quantidade de crimes, que podem ser trabalhados em outras áreas do Direito, fora da esfera penal", avalia Jorio. 

Ele cita como exemplos de crimes que deveriam ser julgados por outras instâncias, os processos de crimes contra a honra e injúria e difamação, previstos nos artigos 129 e 130 do Código Penal - além do porte de drogas para consumo pessoal,  que consta no artigo 28 da Lei 11.343/2006.

"Estamos jogando para o Estado a responsabilidade de absolutamente tudo, mas a estrutura, que já era precária, não está dando conta. Não há um tratamento cuidadoso com cada história, uma investigação apurada. Por isso, o perfil da maioria dos presos no Brasil  é de homens negros e jovens. Fica mais fácil culpabilizar as pessoas historicamente discriminadas", pontua. 

PERFIL

Esse também é o perfil da maioria das vítimas. De acordo com o Atlas da Violência, negros e jovens foram os principais alvos de assassinatos no Espírito Santo, entre pessoas com idades entre 15 e 29 anos. Eles são 62,3% das vítimas. 

"O perfil das vítimas é muito semelhante ao dos agressores. Cerca de 77,1% dos crimes são cometidos contra pessoas de baixa escolaridade, com no máximo sete anos de estudos. Essa característica mostra a vulnerabilidade em que esses indivíduos estão inseridos, uma vez que são os que mais sofrem com a desigualdade sócio-econômica existente em todo o Brasil. Ao observamos a baixa escolaridade e o abandono das aulas, vemos como esse indivíduo fica suscetível à violência, assim como também a ser mais cooptado por grupos criminosos, já que têm dificuldade em ingressar em um ambiente de trabalho", analisa Pablo Lira, professor e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

MEDIDAS DEFENDIDAS CONTRA A IMPUNIDADE

Maioridade penal

  • O que deveria mudar: menores de 18 anos deveriam ser responsabilizados por crimes hediondos, como homicídio, latrocínio e tortura. Um projeto de lei sobre a redução da maioridade penal tramita no Congresso desde 1993.
Porte ilegal de armas
  • O que deveria mudar: a pena para quem é pego com arma sem porte ou posse deveria ser maior, para desencorajar as pessoas a portarem armas de fogo. Segundo a Lei 10.826/2003, do porte ilegal de armas, a sentença atual é de 2 a 4 anos de reclusão.
Menos crimes na esfera penal
  • O que deveria mudar: Revisão do Código Penal para redução do número de ações julgadas na esfera penal, como forma de aliviar a sobrecarga do sistema.

Fonte: Especialistas citados na reportagem. 

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(*) Maria Fernanda Conti é aluna do 23° Curso de Residência em Jornalismo da Rede Gazeta, sob supervisão da editora Joyce Meriguetti e de Aline Nunes.  

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