Ativista e Empreendedora Social, Priscila Gama coordena 12 Projetos de Ação Afirmativa e Impacto Social e é presidente do Instituto Das Pretas.Org e detentora de um ego leonino

Nunca fui morena

No Dia da Consciência Negra, preciso fazer o que meu peito pedia e resolvi dividir talvez a mais violentadora história da minha vida: o lugar de não lugar

Publicado em 18/11/2019 às 15h09

Eu tenho uma pele mais clara. Obviamente não clara demais para ser branca e às vezes, oportunamente, questionada se sou preta porque minha pele não é tão escura. Sou chamada de morena, mulata, parda-jambo, aquela da cor do pecado... Eu tenho pensado há muito tempo sobre dividir as minhas vivências nesse corpo miscigenado, sexualizado, preto, taxado, padronizado, questionado e público.

Digo que tenho pensado em dividir porque tenho escrito várias coisas soltas que ainda não sei o que fazer, mas hoje, véspera do Dia da Consciência Negra, eu precisava fazer o que meu peito pedia e resolvi dividir talvez a mais violentadora história da minha vida: o lugar de não lugar.

O lugar de não lugar é parquinho de invisibilidade. É a pardisse racista na qual me colocaram a vida toda. É o corpo público que permitiu e ainda permite que as pessoas o toquem (ou tentem) sem terem a menor intimidade ou qualquer autorização para isso... Esse lugar de não lugar é o tipo exportação, da hipersexualização que faz com que, mesmo nos ambientes mais profissionais o sexo seja mais visto que a competência. É como se meu cérebro fosse um todo de conteúdo sexual, deliberadamente a despeito de toda produção intelectual que ele é capaz de produzir.

Mulheres mulatas. Ah as mulas... “elas servem pra subir, pra montar e não pra pensar e avançar”. É cruel eu sei... e como sei, mas acreditem, até hoje o que me atravessa é que esse tipo de violência não me é poupada, nunca foi, assim como não poupa nenhuma mulher na minha posição, situação, recorte e realidade.

Agora vamos à negritude.

Cada vez mais tenho certeza de que a proposta e a romantização da miscigenação é um programa político pra eliminação da pretitude no Brasil. Tenho cada vez mais certeza de que a naturalização que um parceiro não-negro dá ao indivíduo negro é um processo de construção história racista que todo mundo é submetido, até nós. É um rolê nítido de que a cada geração a família vá se clareando e portanto, a afrodescendência só será lembrada e exaltada na hora do samba, do futebol e da comida quando a gente ouve um “Eu tenho um pé na senzala, adoro feijoada!” ou “Olha o meu samba e a minha bunda, meu sangue é de negona.”

Ah... passar por aquela batida policial ninguém quer, né? Nem ser seguida por segurança no supermercado ou shopping. Nem ser mal atendida ou absolutamente ignorada no banco que a sua empresa tem conta! Nem ser preterida. Ignorada. Invisibilizada, Baleada. Nem o corpo invadido, assediado, estuprado com naturalidade, por que corpos como o meu tem o acesso da permissão que, historicamente serviam sexualmente os senhores e que até hoje, seus netos e bisnetos ainda insistem em acreditar e tentam sem moderação exercitar.

No trabalho, corpos como o meu nunca ascendem profissionalmente por competência, mas porque fizeram sexo com alguém. Notícia falsa! Fake News! Quem liga? Corpos como o meu tem que aceitar a mentira como se fossem verdade e ainda fingir arrependimento, a final, e se erguer a voz e falar a verdade: demissão na certa – já aconteceu comigo.

Via de regra, a verdade que sai de corpos como o meu, tem total menos valia que a mentira que sai do agressor. É, meus queridxs. Brasil, novembro de 2019.

Enfim, eu começo falando sobre miscigenação, passo por casamentos inter-raciais, falo de “corpos como o meu”... onde tá a consciência negra aí, Priscila?

Então, corpos como o meu são de mulheres negras – a pele é mais clara, algumas tem até o cabelo menos crespo, algumas até tem a pele escura e o cabelo liso – mulheres que tem a sua pretitude questionada em razão da oportunidade, mas que nunca, nunca foram nem nunca serão mulheres brancas.

Vocês veem o racismo nesta questão?

Pois bem, sejamos mais didáticxs: Grazi Massafera, Débora Secco e Paola Oliveira são todas mulheres brancas? Tem alguma mais branca que a outra? OU MELHOR: Tem alguma menos branca do que a outra? OU MELHOR: Você já ouviu alguém questionando o grau de branquitude de um branco?

Mas é claro que não. A branquitude não pode ser questionada. Mas a negritude pode e, na perspectiva racista, inclusive, ela deve, porque assim cria-se nichos dentro de uma massa, um coletivo, um registro a menos no bolo, um “desfortalecimento” tendencioso pra quem quer enfraquecer um montante populacional que orgulhoso e organizado seria e será ainda mais potente.

A negritude ou pretitude - se você preferir, pode ser questionada. Sempre pode. E infelizmente esse comportamento de questionamento absurdamente racista é levantado nos lugares menos absurdos. Mas é o racismo agindo novamente, inclusive no auto-olhar. Mas estamos conseguindo cada vez mais fortalecer o afeto com a negritude evidente, mesmo em corpos miscigenados como o meu. E o mito das mulatas é substituído progressivamente por reconstruções potentes onde mulheres negras se reintegram da posse e da identificação de sua própria existência e erguem a voz, certas de quem são, comandando a decisão sobre os caminhos para onde seguirão.

Beyoncés, Angelas Davis, Marieles, Jaquelines, Raylas, Luanas, Benivaldas, Danieles, Julianas e tantas outras que, ao assumir, se orgulhar e plantar a ancestralidade sob a sua vida, seguem somando as forças e ajudando esse lindo todo a recuperar o seu lugar.

Que os corpos de todas a mulheres negras tenham um texto de potência para um caminho sem violência, sem questionamentos, sem acessos deliberados e sem um contexto estabelecido para impor limites para poder se orgulhar.

Findado o texto. Me sinto leve.

Obrigada pela companhia.

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