Administradora de Empresas e Educadora Física. É Pós Graduada em Gestão Estratégica com Pessoas e em Prescrição do Exercício Físico para Saúde pela UFES.Atua como consultora em acessibilidade e gestora na construção e efetivação das políticas públicas para a pessoa com deficiência em Vitória.

Deixem as crianças perguntarem

A colunista Mariana Reis conta que sempre lidou muito bem com a curiosidade das crianças quando é perguntada sobre o fato de estar em uma cadeira de rodas

Publicado em 12/10/2019 às 11h06
A colunista Mariana Reis. Crédito: Reprodução/ Instagram @marianabreis
A colunista Mariana Reis. Crédito: Reprodução/ Instagram @marianabreis

Tenho experiências fantásticas e quase sempre surpreendentes com esses pequenos. Fui professora de ginástica artística por vinte e quatro anos e tenho histórias que dariam um livro. Passei muito tempo com eles. Quase sempre era desafiada com as abordagens espontâneas e legítimas sobre minha deficiência. Por que eu estava ali, sentada na cadeira de rodas, era sempre a pergunta mais veloz.

Para iniciar a conversa de como as crianças são responsáveis por essa construção livre e leve da minha vida como professora cadeirante, dia desses, um pequeno me parou e lançou como flecha a sua primeira indagação: “como você faz cocô?” A mãe tentou impedir que eu respondesse e que outras dúvidas viessem do pequeno e curioso menino. Lóóóógico que eu e ele travamos um jogo de perguntas e respostas.

Sempre lidei muito bem com a minha deficiência e as crianças me ajudam muito cada vez que querem saber sobre aquilo que é diferente do que elas estão acostumadas a ver. Afinal, não é sempre que vão se deparar com pessoas dispostas a ensinar sobre o universo diverso entre nós. Esse universo de pessoas diferentes e com características diferentes que se permitem olhar, perguntar, se colocar no lugar do outro e tornar acessível aquilo que nossos olhos imaginam não alcançar. Eu não perco a oportunidade de parar e responder a todas as crianças que, curiosas, me bombardeiam de perguntas. Tem que ser assim, gente! É com a informação que vamos desconstruir tantos preconceitos e estigmas que ainda vemos e vivemos. João era o nome dele e foi como uma estrela cadente no meu céu a realizar um pedido. Aquele instante, que quase te tira o folego, foi o que de melhor aconteceu no dia.

Assim como sou facilmente abordada pelas crianças nos lugares, foi sempre durante as minhas aulas as mais intensas conversas. Outro dia recebi uma figurinha de três aninhos, a Antonella. O primeiro contato dentro do espaço da ginástica é sempre instigante, tanto para mim, que fico na expectativa das perguntas e dos olhares curiosos, quanto para ela, que deve achar todo aquele ambiente da sala de ginástica encantador, colorido, mas também ao mesmo tempo esquisito. Porque é um ambiente onde tem outras crianças pulando, subindo, pendurando, ficando de cabeça pra baixo e uma professora que anda de maneira diferente da maioria dos outros professores.

Passado esse momento de quase ‘choc’, começa então todo processo de sedução. E num piscar de olhos ela já está lá tirando os sapatos para pular no trampolim acrobático. E diz que quer ir sozinha sem ninguém para dar a mão. Pronto, é agora que eu me aproximo da sua experiência, a brincadeira é comigo. E nessa interação, vamos construindo a aula num mundo de imaginação e fantasias. As crianças precisam saber sobre o que é diferente para elas e não podemos impedir que perguntem, pois é assim que elas vão construir um mundo mais solidário e menos solitário. Quebrar paradigmas requer ampliar o olhar e entender o outro. Fingir que não vê e alimentar dúvidas não é empático.

Por enquanto, a Antonella ainda não me fez nenhuma pergunta do tipo “por que você está aí?” ou ”como você faz cocô?”. O que interessa a ela é brincar de aprender a ginástica e não tem nenhuma barreira que nos impede que isso aconteça.

Gosto da frase de Vygostsky, um pensador importante na área da educação, pioneiro no conceito de que o desenvolvimento intelectual das crianças ocorre em função das interações sociais e condições de vida. “O saber que não vem da experiência não é realmente saber”.

Quando lembro de Vygostsky em minha aulas, o “faz de conta” é a frase que mais uso e quem me dera pudesse usar também em nossos dias de adultos. O faz de conta, também chamado de jogo simbólico, é a primeira oportunidade de contato das crianças com as regras, sendo também um aprendizado fundamental sobre o seu papel na sociedade. Ele promove o encontro entre um mundo imaginário e o mundo no qual elas vivem. É com esse tipo de brincadeira que as crianças têm a oportunidade de desenvolver a imaginação.

Sou privilegiada por ter as crianças nesse meu processo de releitura como pessoa com deficiência. Elas me tornaram mais acessível e com muita clareza sobre a forma de como encarar as limitações do mundo. Sempre achei incrível durante o tempo que passávamos juntas, observar como elas constróem suas histórias e, com isso, expressam vontades, reforçam sua identidade.

É tão bom ter uma história para contar. Quem não se lembra de momentos legais quando crianças? Conviver com os diferentes, viver tudo aquilo que se tem direito, sujar os pés, mãos e rosto, sujar o tapete e marcar a casa inteira. Viemos para deixar nossos passos, construir nossos caminhos. Então, se você também é uma criança que vai querer sempre brincar de viver e aprender, não perca tempo. Aproveite o dia. E permita que a sua curiosidade rompa barreiras que nós adultos costumamos construir.

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