É artista e escritora, e como observadora do cotidiano, usa toda sua essência criativa na busca de entender a si mesma e o outro. É usuária das medicinas da palavra, da música, das cores e da dança

Momentos de tensão

"Quantas vezes me desespero, perco o rumo, não acho freio, faço feio"

Publicado em 16/12/2019 às 10h37
Atualizado em 30/03/2020 às 13h55
Momentos de tensão. Crédito: Unsplash
Momentos de tensão. Crédito: Unsplash

Quantas vezes senti medo, te achei feio, senti raiva, me condenei, temi o hospício.

Quantas vezes invento o que não existe pra chegar mais perto do abismo. Quantas vezes me desespero, perco o rumo, não acho freio, faço feio. Quantas vezes me sinto só, desacredito, me parto ao meio. Quantas vezes escuto mentiras, me finjo de louca-desentendida. Quantas vezes escuto a verdade e me faço de louca-desentendida do fim ao começo. Quantas vezes duvido de tudo, perco o prumo, engasgo, choro na mesa.

Quantas vezes erro a cor, borro a linha, exagero no blush e saio assim mesmo. Quantas vezes me comparo, me pego pelas costas, me traio. Quantas vezes tenho saudade de agora mesmo, me desperdiço caçando assunto com a nostalgia do que ainda nem existe. Quantas vezes perco a chance de errar um pouco pra ser mais eu mesma. Quantas vezes procuro discernimento, mas saio com a sacola cheia de fantasias.

Quantas vezes entrego, com um beijo na mão, o protagonismo da minha própria vida.

Quantas vezes perco o pudor de vacilar só pra ver o que acontece. Quantas vezes dou visão, sabor, direção, seta, inspiração e nada recebo. Quantas vezes sou alvo. Quantas vezes atraio pessoas danificadas e quantas vezes as deixo me consumir aos pedaços.

Quantas vezes como as peles em volta das unhas até sangrar. Quantas vezes me transformo em ferida. Quantas vezes penso em te ligar. Quantas vezes latejei nas pontas dos dedos procurando seu nome na tela fria. Quantas vezes deixei você amassar minha alma com os pés. Quantas vezes você não me espremeu lentamente entre os dedos. Quantas vezes fiz mais que te compreender. Quantas vezes de longe mesmo possuí você. Quantas vezes menti pra mim, pra sobreviver.

Quantas vezes chorei acompanhada de Djavan enquanto o céu perdia o azul. Quantas vezes embacei o espelho. Quantas vezes telefonei primeiro.

Quantas vezes serão necessárias para sarar daquilo que não tem cor? Quantas vezes a ponta fina da lapiseira ameaçando, leviana, a palma da mão esquerda? Quantas vezes vou precisar me defender de mim mesma?

Quantas vezes perderei a presença, errarei o passo, me esquecerei da festa? Quantas vezes o fim do ano ainda vai me esfregar na cara as velhas promessas? Quando afinal terei certeza: a parte que falta não interessa –– porque ela sou eu, e eu sou ela.

Minha terra mental é lar de inúmeras inquietudes, mas a cada 21 dias, na ausência completa de progesterona, os terremotos se acentuam e eu desço ladeira até meu próprio submundo. Isso é ser fêmea, está entendido. Ainda assim, assusta.

Ontem mesmo chorei copiosamente na mesa do restaurante porque meu prato de macarrão veio errado. Pensando agora, chega ser engraçado, eu soluçando e o garçom, diante da cena de uma mulher borrando a maquiagem, quase oferecendo um abraço. Nota: agora, de volta ao corpo, admito que o golpe hormonal da famigerada tensão pré-menstrual pode ser realmente tóxico, quiçá sem volta (naquele restaurante, por exemplo, voltarei jamais).

Finalmente, voltando à questão da crônica, “quantas vezes...”, a resposta é simples, curta e grossa: enquanto houver ciclo menstrual, minha cara, uma vez ao mês, com certeza. Depois disso... Ah, depois disso, é surpresa.

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