Maria Sanz é artista e escritora. Como observadora do cotidiano, usa toda sua essência criativa na busca de entender a si mesma e o outro. 

Matar de pressa

"Mas a cada vez que volto de uma imersão na floresta fico ainda mais certa de que os desajustados somos nós"

Publicado em 18/11/2019 às 11h21
Tratamentos estéticos . Crédito: Reprodução/ Instagram @90scigarettes
Tratamentos estéticos . Crédito: Reprodução/ Instagram @90scigarettes

Engraçado, desde sempre ouvimos a conversa de que o índio é preguiçoso. Mas a cada vez que volto de uma imersão na floresta fico ainda mais certa de que os desajustados somos nós. Ora, quem foi que disse que o oposto da preguiça é a pressa?

Sei não, mas desconfio que é bom ficar ligado, porque há muito, o mundo está determinado a instalar na gente essa ideia: preguiçoso é o sujeito que não vive apressado.

Que grande balela!

Não percebemos, mas os efeitos colaterais da pressa crônica que vivemos nos esmaga. Imagina, obrigamos nossos corpos a levantar, andar, conversar, almoçar no mesmo ritmo daquele que precisa chegar com uma parturiente no hospital: correndo. Aliás, enchemos a boca pra dizer "ah, hoje eu não posso, minha vida está uma correria!" –– achando lindo ser refém da guerra contra nós mesmos.

Pense comigo, sedados pela ansiedade, não nos damos conta que estamos "vivendo contra" (o tempo, a natureza, contra nós mesmos). E viver contra o que quer que seja, por si só, já é uma estupidez.

Então por que não tomar consciência? Por que não exercitar a escolha de viver cada dia mais a favor do fluxo de nossas vidas? Com menos pressa, gastando menos combustível, produzindo menos lixo, e mais saúde, mais harmonia.

Fique sabendo, assim vivem os índios: no ritmo do sol, na densidade na noite, na velocidade das sombras, no fluxo das águas, ao som da mata... E tudo funciona. Rapaz, é incrível ver como as coisas acontecem no tempo do tempo...

Falando nisso, lembrei de uma história que os índios contam sobre um sujeito apressado.

Reza a lenda que ele nunca havia se casado e vivia com a mãe em sua taba. A mãe, já preocupada com a solidão do filho que só pensava em pescar, certo dia foi até o rio e apanhou uma porção de argila sagrada, a mesma com que se faziam as cerâmicas da aldeia, e colocou debaixo da rede onde o homem dormia. Quando ele chegou da pesca, viu o balde cheio de argila e achou estranho, mas preferiu não dizer nada. Na manhã seguinte, quando se levantou, encontrou do lado da rede uma mulher lindíssima, de pele lisa e cabelos anelados. A argila havia se encantado na forma de uma índia que, sorrindo e disse a ele que seria sua companheira pela vida inteira, se dela ele cuidasse.

Pois bem, o homem ficou maravilhado e os dois foram muito felizes. Até o dia em que foram para mais uma pescaria e, enquanto o homem pegava Piabas, o céu começou a fechar. A mulher pediu ao homem que fizesse para ela um abrigo, mas ele disse "já vai", ansioso para pegar mais peixes. As nuvens se aproximavam e a mulher repetiu o pedido, ao que ele respondeu "só mais um minutinho". E assim, quando a primeira gota de água caiu do céu, ela fez seu último suplicio, e ele bradou: "um segundo, mulher!"

Quando finalmente ele olhou para o lado, ela já não estava.

Havia se desfeito com a água. E assim, o homem só, com seu balde de peixes, chorou por toda eternidade.

Donde se conclui que o tempo é um curandeiro, a natureza, uma sábia, e nós um bando de ansiosos querendo o que ainda não temos – às vezes, no caso, um balde de Piabas.

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