> >
Calabouço

Calabouço

Não estava certa, contudo, do que faria com aquelas duas folhas de caderno escritas frente e verso e borradas à lágrimas. Dobrou bem dobrado e pensou em esconder no fundo da gaveta de meias.

Publicado em 22 de novembro de 2019 às 18:02

Ícone - Tempo de Leitura 0min de leitura
Mulher com mãos cruzadas. Dor, sentimento. (Unsplash)

Domingo à noite, quando acabou o Fantástico e Carlos já roncava de barriga pra baixo, Melissa escreveu uma carta. Sentada no chão, encostada na cama, apanhou a caneta e o caderno que ficavam no criado e, chorando, à luz da televisão, escrevinhou uma espécie de rascunho sobre suas razões para deixar aquele homem.

Começou genérica, mas foi muito específica. Logo no segundo parágrafo, falou dos modos com que ele a tratava nos dias de churrasco – no caso, todo domingo e alguns sábados; também pontuou o modo como ele tratava as tampas – da pasta, do xampu, do requeijão, do vaso; e descreveu ainda os modos que lhe faltavam quando ele a procurava de noite, no escuro do quarto. Exatamente como fizera há pouco.

O manuscrito talvez fosse uma tentativa de lembrar a si mesma das coisas que jamais esquecia e colocar pra fora o que sempre esteve guardado.

Não estava certa, contudo, do que faria com aquelas duas folhas de caderno escritas frente e verso e borradas à lágrimas. Dobrou bem dobrado e pensou em esconder no fundo da gaveta de meias. Abriu a cômoda com cuidado, levantou os pares do canto e colocou o papel embaixo. Foi até a cozinha preparar um chá e, enquanto enchia o caneco com água da pia, lembrou-se que Carlos, virava e mexia, caçava as próprias meias em sua gaveta. Decidiu voltar ao quarto, mas no meio do caminho, pensou que não seria de todo ruim se aquele homem encontrasse por acidente a carta... Voltou para cozinha, colocou no fogo o caneco d’água e ficou olhando as pequeninas bolhas se formarem. Teve medo.

Marchou até a cômoda, reabriu a gaveta com cuidado, apanhou o papel e apertou entre os dedos. Tomou o chá de capim limão de pé, encostada na pia, pé direito apoiado na panturrilha da perna esquerda, e as palavras escondidas na mão cerrada. Foi, de repente, acometida pela ideia de esconder o tratado no velho cofre da dispensa – estimado, mas obsoleto, presente de casamento do tio Hermes. O cofre há muito estava vazio e o paradeiro de sua chave só ela sabia (colado com durex, debaixo da santa, em cima da geladeira).

Àquela altura (do casamento), a velha caixa-forte só guardava o escuro. Além de algumas teias de aranha e o cheiro forte de poeira. Melissa apanhou um um pano úmido e passou pelos cantos, em respeito às próprias palavras. Depois encontrou um livro de receitas de biscoitos sem glútem, que estava jogado na dispensa, e colocou a carta entre as páginas. Pôs tudo no fundo da caixa de ferro, trancou e voltou a esconder a chave.

Dessa vez, porém, achou arriscado usar o esconderijo da santa, e bolou um novo.

Isso já faz mais de três anos. Melissa não sabe aonde escondeu a chave. Também não sabe porque continua casada. Certa vez chegou a chamar o chaveiro, mas ele disse que sentia muito, não arrombava cofres. Melissa pensa nos sentimentos que um dia pôde parir em palavras, mas condenou ao escuro impenetrável.

Este vídeo pode te interessar

(Fazer o quê?) O medo é um calabouço em si.

Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rapido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem

Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta

A Gazeta integra o

The Trust Project
Saiba mais