A vida da médica Kenia Flores Perez, de 35 anos, ganhou outro ritmo a partir do meio desta semana um ritmo indesejado por ela. No fim da tarde de quarta-feira, Kenia terminou de empacotar suas coisas. À noite, participou de uma festa de despedida, regada a música sertaneja. Acordou cedo na quinta e recebeu a visita de moradores da pacata Teresina de Goiás, de 4 mil moradores. O policial apareceu, a vizinha apareceu, a dona da casa ficou o tempo inteiro ao lado. Num clima quase fúnebre, deu um longo abraço no secretário de Saúde da cidade. Às 10h, rumou para Brasília, a 280 quilômetros do município. Foi direto para um hotel, e passou as últimas horas no Brasil esperando o voo que a levaria para Cuba , nesta sexta.
Kenia é um dos milhares de médicos cubanos que precisaram deixar às pressas seus postos de trabalho e suas vidas no Brasil já consolidadas, para muitos deles em razão da decisão do governo de Cuba de abandonar o Mais Médicos, depois das ofensivas do presidente eleito, Jair Bolsonaro, contra o modelo do programa. A médica se preparava para tirar férias neste mês. Já são dois anos no Brasil, sempre em Teresina de Goiás, uma cidade encravada na Chapada dos Veadeiros, na região mais pobre e isolada do território goiano. Um e-mail mudou tudo. As férias viraram um retorno atabalhoado e definitivo.
As decisões sobre o destino dos médicos cubanos foram comunicadas em e-mails curtos, disparados diretamente aos profissionais, sem passar pelos secretários de saúde. Os contatos foram feitos pelos cubanos que estão à frente da área responsável na Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) no Brasil, entidade que gerencia os contratos do Mais Médicos, e pelo próprio governo cubano.
Kenia foi pega de surpresa. Seu contrato venceria somente no fim de 2019. Por e-mail, foi avisada da necessidade de voltar a Cuba. Primeiro, informaram a ela que era preciso estar num hotel em Brasília após as 14 horas de quinta. Depois, a informação repassada foi para ela chegar ao hotel antes do meio-dia. E assim foi feito.
A outra médica cubana que fazia atendimentos em Teresina, Mabel Hernandez Gonzalez, deixou a cidade antes de Kenia. Foi uma saída ainda mais apressada, sem chances de despedida dos pacientes e da comunidade local. As médicas são adoradas pelas pessoas não há um único relato contrário à atuação profissional das duas. Mabel foi a Brasília para o voo a Cuba antes mesmo de Kenia.
O improviso e a pressa no retorno surpreenderam o secretário de Saúde do município, Josene Pereira Lopes. Ele planejava uma festa de despedida para as duas. Conseguiu fazer a festa apenas para uma delas. A música sertaneja não abafou a frustração e a tristeza das pessoas que foram à despedida.
Kenia não disfarçava a frustração em ter de antecipar o encerramento de um contrato previsto para durar até o fim do ano que vem. A médica já estava adaptada ao Brasil, à pequena comunidade onde vivia e trabalhava. Parcelou o pagamento da compra de diversos móveis, que ficaram para trás. Empacotou o que foi possível, seguiu para Brasília sem saber se conseguiria despachar todos os seus pertences.
A experiência no Brasil é a segunda dela no plano internacional. Antes, trabalhou como médica em Maracaibo, na Venezuela, entre 2008 e 2011. Voltou para Cuba e, desde novembro de 2016, atendia pacientes de uma das regiões mais pobres e isoladas do Centro-Oeste brasileiro, onde raramente um médico se dispõe a morar na cidade. Encontrou um Brasil diferente do que ela via nas novelas brasileiras transmitidas em Cuba.
Aqui existe demasiada desigualdade social. É muito diferente do que eu via nas telenovelas brasileiras. Eu tinha outra noção. Deveria existir o básico em saúde e educação. Mas na zona rural, onde está uma comunidade quilombola, quase todos são analfabetos, por exemplo diz Kenia.
Segundo a médica, o primeiro ano no Brasil - de busca por aceitação dos moradores da cidade - foi o mais difícil. O segundo ano foi de adaptação completa. Por isso o sentimento de frustração, diante da decisão repentina comunicada por e-mail.
Kenia voltará para sua cidade, Las Tunas, e reencontrará a filha de sete anos, que ficou com os pais. Ela planejava uma visita da filha e dos pais ao Brasil, plano que não foi possível em razão do alto preço das passagens aéreas.
A médica, apesar da contrariedade com o retorno apressado, não critica o modelo adotado para os cubanos no Mais Médicos. Por outro lado, ela critica a posição de Bolsonaro em relação aos profissionais de Cuba que vieram ao Brasil. O presidente eleito já disse mais de uma vez que os médicos cubanos oferecem atendimento inferior ao oferecido por brasileiros, e lançou dúvidas até mesmo sobre serem médicos de fato.
Ele nos depreciou, mas é a população que vai sentir os efeitos, principalmente da Amazônia, indígenas, quilombolas, que nunca tiveram atendimento médico. Nós não viemos ao Brasil enganados. Assinamos um contrato afirma Kenia.
O fato de ficarem apenas com uma parte do dinheiro repassado a Cuba pelo Mais Médicos também é minimizado pela médica:
O governo não pega o dinheiro para eles, mas usa em equipamentos, em saúde, em educação.
Kenia descarta pedir asilo no Brasil e não vê possibilidades de um visto de residência, uma vez que não há facilitadores como ter se casado com um brasileiro. Ela voltará a trabalhar na mesma unidade básica de saúde onde atuava em Las Tunas antes de se mudar para o Brasil. Receberá 1.550 pesos cubanos, ou cerca de 60 dólares. No Brasil, recebia R$ 3 mil (788 dólares) dos R$ 11,8 mil destinados a cada profissional do Mais Médicos.
Pode parecer pouco, mas em Cuba todos trabalham. Na minha casa, por exemplo: meu pai é professor, minha cunhada é médica, meu irmão trabalha numa estatal de exploração de níquel.
Depois das despedidas que foram possíveis, um carro levou Kenia e uma colega médica que atuava em Cavalcante, cidade vizinha, para Brasília. Os consultórios dela e da outra médica cubana de Teresina de Goiás estão fechados.
Foi tudo muito rápido, não deu para acomodar nada. Estava esperando as férias, agora estou de volta em definitivo. Mas se uma porta se fecha, outra pode abrir diz ela.
O secretário de Saúde de Teresina resumiu o clima da cidade diante da saída de cena repentina de Kenia, após o abraço de despedida:
Uma psicóloga nossa passou num concurso em Nova Roma. É uma cidade aqui do lado. Com Kenia é diferente. Ela está indo para Cuba. Esta deve ser a última vez que nós a vemos.
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